a Sobre o tempo que passa: Muito republicanamente monárquico...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.3.08

Muito republicanamente monárquico...



Bem me diziam ontem, em pleno debate, que eu corria o risco de ficar de mal com os republicanos, por amor ao rei, e de mal com os monárquicos, por amor à república, só porque manifestei publicamente a minha identidade de sempre, alcançada bem antes de Abril de 1974, quando nasci para a política militante do nacionalismo místico, em adesão à lista da CEM de 1969. Os primeiros embates vieram naturalmente de quem se esperava, de um "site" que se diz oficialmente associado ao Instituto da Democracia Portuguesa do meu amigo Mendo, só porque tive a ousadia de falar na utopia, dizem. Quando tudo foi um exercício de simbologia política, até nos sinais que usei para homenagear o 1 de Dezembro de 1640, o 24 de Agosto de 1820 e o 24 de Julho de 1833.

Por mim, confesso, quis falar no paradoxo, de forma mais ou menos maiêutica, assumindo a velha mas não antiquada tese de uma república com rei e salientando a necessidade de, em primeiro lugar, restaurarmos a república, usurpada que continua a ser pelo estadão, por certa teocracia e por muitos negócios, acabando transformada neste híbrido do estado a que chegámos. Recordei que os piores dos totalitarismos do século XX foram repúblicas e que as melhores repúblicas de hoje são monarquias democráticas, com duas delas a voltarem ao rei depois de terem sido repúblicas, como o Reino Unido, após a cromwellada, ou os Países Baixos.
Não falei na ética republicana de Kant, esse monárquico, mas preferi recordar a ideia de regime misto de Aristóteles e de São Tomás de Aquino, esses adeptos da "polis" e da "ideia de reino". Por isso é que, para comentar o que ontem disse, vou repetir texto que publiquei ... em 1989, em homenagem a quem sabe discordar em concórdia.

"Muito ortodoxamente fui interpelado por alguns monárquicos que estranharam a circunstância de, muito heterodoxamente, me dizer "realista republicano". Com todo o pragmatismo de quem não perdeu o sentido da aventura, posso observar que, no actual quadro político, não existe um problema de vértice do regime, existe um problema quantos às fundações morais de qualquer possível regime.

Porque, se, formalmente, não vivemos em monarquia também substancialmente não temos um regime republicano, segundo os ideais dos revolucionários da Rotunda.

Julgo pertencer ao grupo dos portugueses que, apesar de nunca se ter desligado da tradição monárquica, subscreve a exigência constitucional da "forma republicana de governo".

Com efeito, talvez seja capaz de dizer, com todo o cuidado literal e doutrinário, que foi alguém de formação monárquica que inspirou esse agregado de palavras. Aliás, julgo não poder haver nenhum doutrinador monárquico, dos clássicos aos contemporâneos, incluindo os próprios integralistas, que não defenda a monarquia como forma republicana de governo.

Em abono desta afirmação, poderia, aliás, começar por invocar Francisco Suarez e depois passar aos clássicos do tradicionalismo contra-revolucionário e anti-absolutista, dado que todos eles assentaram as suas crenças consensualistas no pacto de associação e na consequente origem popular do poder.

Diria até que, para poder ser profundamente constitucionalista, teria que começar por reverenciar a matriz de todos os constitucionalismos modernos, que é o muito "res publicano" constitucionalismo da monarquia britânica, um constitucionalismo que nunca precisou do conceito de Estado nem do conceito de Constituição para ser a matriz de todos os Estados de Direito Democráticos dos nossos tempos contemporâneos.

E mesmo na nossa história portuguesa, talvez convenha dizer que, antes de haver as constituições monárquico-liberais escritas, nós já tínhamos sido, até à recepção do iluminismo absolutista, com o seu despotismo ministerial, um Estado Constitucional e, desse modelo de Constituição Histórica, ainda hoje poderíamos extrair muitas lições de consensualismo para alguns desvios absolutizantes do nosso tempo.

Até tivemos uma monarquia e uma constituição, as nossas tão esquecidas leis fundamentais, antes de se terem elaborado os conceitos de Estado Moderno e de soberania, nos séculos XV e XVI. Isto é, a organização política dos portugueses tinha não só uma espécie de Estado pré-estadualista como também um género de constituição pré-constitucionalista.

O facto de a Primeira República ter sido caricaturalmente parlamentarista e partidocrática, transformando o Presidente da República num simples instrumento do partido dominante , eleito pela "classe política" num colégio eleitoral, apenas provocou um vazio na simbologia máxima do Estado.

A partir do 28 de Maio e, muito principalmente, com a institucionalização do Estado Novo, através da Constituição de 1933, gerou-se um formal presidencialismo bicéfalo, onde efectivamente imperava o Presidente do Conselho de Ministros que, mesmo depois de abandonar a titularidade da "ditadura das Finanças", continuou a ser o efectivo "Princeps". O salazarismo, com efeito, liquidou em Portugal o dilema Monarquia/República, gerando um hibridismo que a dita III República, posterior ao 25 de Abril, ainda não conseguiu superar.

Com efeito, o estilo salazarista de chefia do Estado foi particularmente acirrado com o General Ramalho Eanes que, apesar de legitimado pelo voto popular, nunca se libertou de uma outra superior legitimidade: a de ser militar, a de pertencer a uma entidade que a si mesma se considera diversa da "sociedade civil".

Só com a eleição de Mário Soares se deu uma efectiva restauração da República a nível da chefia do Estado, uma restauração que, contudo, não foi feita contra os monárquicos nem marcada por sucedâneos cesaristas e que levou o próprio Duque de Bragança a qualificar a actuação de Soares como a de um verdadeiro monarca.

A monarquia em Portugal não foi derrubada pelo 5 de Outubro. A monarquia já tinha sido derrubada muito antes, tanto com o absolutismo como com o revolucionarismo de inspiração jacobina, e continuou a ser derrubada depois dessa data, com as subserviências face ao cesarismo e às ditaduras.

Porque a monarquia, como instituição de direito natural, apenas existe quando a instituição tem efectiva legitimidade, isto é, quando ninguém a discute e todas a praticam como instituição viva, tão natural como o ar que se respira ou a nação que todos os dias se plebiscita.

Com efeito, não haveria monarquia em Portugal, nos termos da legitimidade das velhas leis fundamentais, se, por exemplo, através de um referendo, a maioria absoluta ou a maioria qualificada da população optasse pela monarquia.

Enquanto a ideia monárquica continuar factor de divisão entre os portugueses, enquanto continuar vivo, mesmo que minoritário, um partido republicano, a monarquia nunca poderá conquistar a legitimidade. A monarquia não existe se depender da obediência e não do respeito. Só existe monarquia se o rei for tão natural como a família, sem estar dependente dos factores da conjuntura. Por isso é que a existência de partidos que se qualificam como monárquicos continua a ser um dos principais atentados contra a própria ideia monárquica em Portugal.

Do mesmo modo, será impossível qualquer instauracionismo monárquico se persistir na opinião pública a confusão entre a ideia monárquica e o aristocratismo, muito principalmente daquele que continua a ser ostentado por certos aristocretinos da nossa praça, maioritariamente descendendentes da falsa fidalguia do baronato devorista, que usurparam os títulos através da especulação financeira e dos golpes partidocráticos.

Na verdade, qualquer instauracionismo monárquico só seria viável se a política portuguesa voltasse de novo a ter aquela necessária temperatura espiritual geradora de efectiva legitimidade e de democráticos consensos populares. Enquanto a política que temos continuar a traduzir em calão os discípulos de Maquiavel, o monarquismo corre o risco de não passar de emblema para certas castas falsamente monárquicas e que são as verdadeiras responsáveis pela efectiva não popularidade da ideia de poder real em Portugal.

Diria, pois, à maneira de Fernando Pessoa que, apesar de sempre ter sido monárquico, se houvesse, agora, um referendo sobre a questão, teria que optar pela República para defender os verdadeiros princípios monárquicos".