a Sobre o tempo que passa: Regresso II. Continuação do depoimento

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

3.9.08

Regresso II. Continuação do depoimento

6 — De que forma se pode recuperar o País? Cabe aos partidos políticos e aos poderes instituídos fazê-lo mas parece que muitas vezes não há essa vontade. Porquê?

Presos à pilotagem automática de uma governança sem governo, que se desculpa com a integração europeia e a globalização, deixámo-nos enrodilhar por todos quantos detestam o empreendedorismo e o sentido do risco. Há uma massa cada vez mais inerte e desorganizada que não consegue ser mobilizada para o bem comum, entregando-se alienadamente ao chicote e à cenoura do verticalismo hierarquista do estadão que continua a táctica do enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

7 — Como avalia, actualmente, o sistema político português?

Há um Estado filho do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, Afonso Costa e Oliveira Salazar que teve em Soares e Cavaco os principais restauradores. Geraram estes conservadores do que está, mas não do que deve ser, os tais que até se dizem de esquerda, confundindo esta com o estatismo. Não reparam que o Estado absolutista, seja autoritário ou sectário, pode transformar a democracia no desepero de um partido-sistema que, mesmo quando se transfigura no rotativismo bipartidário, não deixa de manter a mentalidade do partido único ou a cair na tentação usurpadora da personalização do poder


8 — Hoje já não faz sentido falar em ideologias? Elas estão a perecer com a globalização?

Uma ideologia não passa de uma ideia com peso social, onde o elemento ideia, para se propagar na sociedade, se transforma num elemento emocional e num elemento mítico. Sempre houve ideologias e sempre houve dificuldade em identificar a ideologia dominante, dado que ela não precisa de propaganda e difunde-se suavemente, como o ar que se respira. Diremos que, aqui e agora, há uma ideologia vencedora, o demoliberalismo, e há ideologias que pretendem conquistar esse terreno, mostrando-se tão agressivas quanto a falta de receptividade das pessoas face a essas causas ditas fracturantes, ditas de direita ou de esquerda. Basta reparar que os principais inimigos do demoliberalismo têm sido conquistados, desde os democratas-cristãos e socialistas, dos meados do século XIX, que se transformaram em gestores do demoliberalismo no pós-guerra, aos fascistas, hoje ditos pós-fascistas à italiana, e aos comunistas arrependidos, do tipo ministros de Guterres e Sócrates, para concluirmos como o processo sincrético de aculturação vai marchando...

9 — O PS, no Governo, desde 2005, tem mostrado isso mesmo, ou seja, que as ideologias já não interessam na governação?

O PS pós-revolucionário, que meteu o socialismo na gaveta, sempre foi um centro de reciclagem para a democracia pluralista de ex-radicais de esquerda e ex-comunistas, acompanhados até por ministros e altos dignitários do regime derrubado em 1974. Apenas digo que continua a cumprir a sua missão, embora os 20% de simpatias, nas sondagens, pelo PCP e pelo BE, aconselhem a que retome o neo-soarismo, que captou a extrema-esquerda e os anticunhalistas. Daí não estranhar o próximo anúncio das pazes de Sócrates com Alegre...

10 — A direita, que registou mudanças na liderança no maior partido da oposição, pode mudar alguma coisa no espectro político?

Não há esquerdas nem direitas que sejam secularmente políticas, dado que as chamadas “causas” foram usurpadas por certo confessionalismo político-religioso, quase congreganista, do novo politicamente correcto, como se os valores morais fossem monopólio dos fracturantes do esquerdismo, do partido arco-iris, ou da velha sacristia. Daí que quem quiser ser fiel ao velho mas não antiquado humanismo, estóico, renascentista, ou iluminista, corra o risco de ter que passar para o exílio interno, só porque não alinha com o colectivismo sectário de certas congregações catolaicas ou comunistas, como avisava Orwell.