a Sobre o tempo que passa: São Keynes, São Cavaco, São Soares, São Vasco Gonçalves, São Oliveira Salazar, São Afonso Costa, São Fontes Pereira de Melo e São Sebastião José

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.10.08

São Keynes, São Cavaco, São Soares, São Vasco Gonçalves, São Oliveira Salazar, São Afonso Costa, São Fontes Pereira de Melo e São Sebastião José


Dizem que ontem, em pleno Parlamento, foi anunciado o regresso do Estado, que é essa coisa com três elementos, um povo, um território e um governo, visando três fins, a justiça, a segurança e o bem estar, um senhor abstracto cujo nome de baptismo lhe foi dado por Maquiavel, para, cerca de meio século depois, Bodin lhe atribuir o conceito criador de soberania. Os políticos, socialistas, sociais-democratas, esquerdistas, ou direitistas não liberais, invocando São Keynes, São Cavaco, São Soares, São Vasco Gonçalves, São Oliveira Salazar, São Afonso Costa, São Fontes Pereira de Melo e São Sebastião José de Carvalho e Melo, percebem que a dita coisa é uma espécie de jangada empedrada que lhes vai dar a descoberta do caminho marítimo para o mais do mesmo da garantia dos depósitos bancários.

Ontem, também por acaso, encontrei-me várias vezes com o dito senhor Estado, aqui na esquina da Rua da Junqueira, enquanto esperava o carteiro e um aviso de recepção com floreados envolvendo a armilar e as quinas da batalha de Ourique, por causa da multa de uma qualquer EMEL. Reparei, da varanda, que o Palácio de Belém já não está aberto ao público. A Joana Vasconcelos transformou a bandeira em rendinhas e, nos acasos da continuidade, o senhor Estado vestiu-se daquilo que sempre foi: o intendente. O tal Pina da Silva Pais Manique que se passou do pombalismo para a viradeira, da viradeira para o vintismo, do vintismo para o miguelismo, do miguelismo para o devorismo, do devorismo para o cabralismo, do cabralismo para a canalhocracia, da canalhocracia para o rotativismo, do rotativismo para o bonzismo das formigas, etc...

O intendente, celebrizado pelo massacre do povo da Trafaria, onde ganhou medalha de estadão antes de fundar a Casa dita Pia, continua a confundir o serviço também dito público com o espectáculo dos autos de fé, mesmo quando os transformou no palanque de execução dos Távoras e do chão salgado do secretariado da propaganda já não nacional. A inquisição poderá ter acabado, mas os inquisidores e bufos foram reciclados, nacionalizados, nossos, transformados à pressa em agentes gnósticos do reformismo da cunha. Por outras palavras, são os mesmos de sempre que fazem que o Estado seja um eles-que-não-nós, porque todos os animais são iguais, embora haja alguns que são filhos e outros que são de pai incógnito. 

Como continuo liberalmente rebelde, acho que este modelo de Estado nunca conseguirá rimar com a Razão, por mais que se esforcem os constitucionalistas, os conselheiros e os frequentadores dos seminários estaduais do laicismo da juricidade. Aquele Estado a que chegámos, pequeno demais para os grandes problemas do nosso tempo e grande demais para esmagar a solidão individual de um simples cidadão, tem muita banha e pouca massa muscular, ossos descalcificados e quase nenhuma massa encefálica. Os nervos estão esfrangalhados e os olhos estrábicos. Por outras palavras, nem sequer é um monstro. Não passa de um molusco sem espinha, embaciado pelo vinhedo do pós-devoriosmo, com uma cabecinha de réptil, enliguada em barbichas de mandarim, que rimam e até são verdade.

Há décadas que o coloquei como meu objecto de estudo. Ele foi o tema da minha dissertação de doutoramento, nos finais dos anos oitenta do século passado, e até chamei, ao estudo, "ensaio sobre o problema do Estado", onde fui tentando enumerar os subsolos de ideias que iam da "razão de Estado" ao "Estado Razão", entre a realidade da "aldeia" e o sonho da "república universal". Há, pelo menos, uma realidade que detectei: hoje e aqui, sobre cada cidadão, já não há apenas a pedra bruta de um Estado, mas vários calhaus estadualmente não polidos nem civilizados, mesmo que alguns não tenham esse nome. E todos, e cada um dos indivíduos, vivem nas teias, eventualmente libertadoras, dessa pluralidade de pertenças. O Estado a que chegámos na República dita Portuguesa é, talvez, o menos eficaz de todos esses variados Estados que actuam neste território já sem fronteiras e sobre este povo de emigrantes e imigrantes, sobre os quais várias governanças sem governo se vão chocando, entre cavacos, sócrates, barrosos, trichets e bushes. Mestre Kant deu-nos o rumo. Só uma efectiva ideia de república universal, isto é, um global Estado de Direito, pode salvar as pátrias, sobretudo as pequenas, partindo pedras, polindo e civilizando, em nome da boa razão que nunca pode ser lei.

É esta a regulação iluminadora que falta, para nos livramos da selva de Estados, Estadões e Estadinhos feitos lobos de um Leviathan globalizador e clandestino. É por isso que continuo a ser fiel ao movimento liberal de sempre, o tal que teve a ousadia de transformar a coisa de Maquiavel nesse "rule of law", onde "law" não é lei, mas direito, e onde "rule" não é império, mas norma, régua e esquadro, a tal linha recta que apenas tentamos desenhar numa folha branca de sonhos, mas que a nossa imperfeição humana faz sempre torta. Que dos tortos não reze a História.