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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

6.1.09

Deram-me um delegado de propaganda médica, quando eu não queria amostras, banha de cobra e prendinhas, mas um clínico e autênticos remédios


Está confirmado: o frio da recessão vai enregelar-nos e o nosso enfermeiro de família, aqui do bairro de Belém, teve de tratar de umas complicações na família, tanto de problemas bancários, como de umas fazendas nos Açores, e deixou-nos perante uma conversata, das antigas, de um delegado de propaganda médica, aqui do centro público de saúde. Porque todos os delegados de propaganda médica, ou nacional, são sempre iguais a si mesmos: entregam amostras e dão prendinhas, mesmo que sejam computadores falantes, mas não sabem analisar as causas da doença, prescrever os remédios e aconselhar na profiláctica.

Eis como ontem senti Sócrates. Primeiro, quando é brevemente entrevistado nos corredores da SIC antes de entrar na maquilhagem, pois, trocando as palavras, disse que ia ali para transmitir uma imagem, para logo substituir esta palavra pelo nome ideias, talvez temendo essa terrível tríade com Alegre o massacrou para sempre: "imagem, sondagem e sacanagem". Finalmente, quando saiu dos estúdios e, mais uma vez, nos corredores, o mesmo jornalista lhe pediu uma breve comentário. Agora, não foi marcado por palavras que estavam gastas, mas antes pela imagem real de um homem de muitas tormentas, mas já sem o sinal da boa esperança. Tinha perdido o fôlego, embora ainda não fosse um derrotado. Porque ninguém navega na tempestade com a grande nau do almirante Cheng Ho, mas com a flexibilidade das pequenas naus e caravelas, as únicas que fogem da navegação à bolina da pilotagem automática e caminham para o sonho com a verdadeira pilotagem do futuro com que se deve fazer a política da república.

Antes, tinham-me telefonado do "Jornal de Notícias", para comentar a quente, e imediatamente, a entrevista daquele que um dia se disse um animal feroz. Aqui deixo o que a jornalista Alexandra Marques recolheu do essencial que lhe transmiti:

O primeiro-ministro "confessou que estava a falar como candidato a chefe do povo da Esquerda, da que sabe governar e aí fez um erro de cálculo de propaganda", diz José Adelino Maltez. "Porque ninguém alcança a maioria absoluta, dizendo que quer chefiar uma facção".

Para este professor catedrático do Instituto de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, "esteve muitíssimo melhor na primeira parte. Soube driblar a questão dos Açores, em que produziu argumentação combativa. Ganhou pontos". Depois "saltou-lhe a tampa", sobretudo quando teve de falar de Alegre.

"Alegre foi o espinho mais encravado, embora tenha insinuado que é um velho e pertence à história", refere. "De resto levava tudo muito engatilhado, mesmo no financeirismo da Agricultura: Não houve adiantamentos orçamentais para os agricultores porque não protestam, mas houve para bancarrotas dos banqueiros".

Para Maltez, "quem gosta de Sócrates reforçou a ideia, mas não convenceu quem espera por alguém capaz de se adaptar às mudanças e de transformar as tormentas em boas esperanças".

Também disse que fiquei surpreendido com a confissão de Sócrates, a propósito da Quimonda, quando deu a entender que o principal banco português, o qual, mesmo com modelos de gestão privada, é o nosso banco público desde a monarquia liberal, tem actuado como comissário político da governança. Porque nem São Keynes admitiu que a social democracia pudesse ter um aparelho de poder estadual com este nível de intervencionismo. Mas desconfiem de mim, não passo de um velho liberal que admite o intervencionismo público do Estado Supletivo, face a circunstâncias extraordinárias, um pouco como um tal Beveridge que esteve na base do "Welfare State", quando ele era necessário, e de acordo com as próprias teses de Adam Smith, o tal que fez a riqueza das nações e que os próprios trabalhistas britânicos de hoje têm recuperado.

Aliás, já ontem, tinha declarado ao "Diário de Notícias", sobre a direita, o seguinte: a direita está "actualmente dependente de duas personalizações de poder". "Há duas coutadas pessoais que condicionam os partidos: de Paulo Portas, que tem todo o partido com ele; e de Pedro Santana Lopes, que condiciona todo o partido". " O que temos aqui é um problema de feudalização", argumenta o politólogo. Para quem há outro nome que deve ser considerado quando se olha para o caminho futuro deste espectro político - que também está dependente "daquele que é o líder da oposição de direita em Portugal: Cavaco Silva". Uma circunstância que acaba por não ajudar Manuela Ferreira Leite, sustenta, deixando pouco "espaço de autonomia" à presidente social-democrata - "Veja-se o silêncio que teve que ter perante os últimos discursos do Presidente da República."

Por outras palavras, haverá um erro de cálculo de Sócrates se continuar a dividir o eleitorado português entre um povo de direita e um povo de esquerda, utilizando uma expressão de António Barreto, seu dilecto adversário, inventada para qualificar o confronto da candidatura presidencial de Soares contra aquele que haveria de ser o primeiro ministro dos estrangeiros de Sócrates que, passados alguns anos, passou do rigorosamente ao centro para a esquerda do próprio Barreto. Essas categorias podem iludir Sócrates, mais ameaçado pelos berros e argumentos do Bloco de Esquerda, do PCP e de Alegre, e pensando que vai comer as lideranças criancinhas de direita ao pequeno almoço, chamem-se Manuela Ferreira Leite, Santana Lopes ou Paulo Portas. Ainda não deve ter reparado que a verdadeira oposição não vem dessa direita, mas do surgimento de "opinion makers" como Joaquim Aguiar, que lê René Girard, Voegelin e Strauss, ou Medina Carreira, que ainda tem o ar de velho soarista da resistência às modas, enquanto a verdadeira liderança da oposição, a que sabe captar as expectativas do povão, começa, por inteiro, a repousar no fim dos silêncios de Cavaco Silva.

E nenhum destes diz que é apenas do povo de direita contra o tal povo de esquerda. Porque, como revelam os principais estudos de opinião, e o bom senso de quem anda na rua, a maior parte dos portugueses não se assume como da esquerda ou como da direita. E mesmo tipos de direita como eu não votaram, nem estão dispostos a votar, nos actuais líderes e partidos de direita. Preferem os emergentes radicais do centro, do centro excêntrico que consideram as velhas e novas direitas, e as velhas e novas esquerdas, como meras formas de hemiplegia mental, como dizia Ortega y Gasset, mesmo que, como Cristo, não percebam nada de finanças, como diria Pessoa, para quem só os idealistas, com verdadeira tecnologia filosófica, conseguem ser da efectiva prática, evitando que, na mesma prática, a teoria acabe por ser outra, como acontece com os meros propagandistas sem autenticidade, porque mesmo que sejam gajos porreiros, podem acabar em coveiros.