a Sobre o tempo que passa: O regresso à economia privada das forças vivas, mas sem economia de mercado

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.1.09

O regresso à economia privada das forças vivas, mas sem economia de mercado


Mobilizado pelas entrelinhas hermenêuticas de decretos regulamentaristas do aparelho de poder, e pelas muitas folhas kafkianas de articulados e linguados, apenas confirmo como pode quebrar-se uma relação de amor institucional, quando deixa de existir a tal comunhão pelas coisas que nos mobilizam em lealdade básica. Estamos em recessão, mas o delírio da engenharia subsidiocrática vai agravar-se, e a própria liberdade de expressão pode vir a ser controlada na emissão dos SMSs ou nas conversas de corredor, dado que a física das partículas percebe de laboratórios e túneis que querem atingir o segredo da Criação, mas não de favoritos, das loucuras neofeudais e de outros clássicos do maquiavelismo, do absolutismo e da Razão de Estado, incluindo a cristã. Logo, resta resistir fora do lugar donde se já não é, mas onde apenas se está.

Vale-nos que, ainda ontem, em dia pleno de frio, se podia olhar a plenitude solar do Tejo, em fim de tarde, e ler, com calma, o magnífico artigo de André Glucksman no "El Pais" que, a propósito da questão de Gaza, se inspirava no meu querido Pascal, antes de espreitar o belo livro de Sheila Jasanoff, Designs on Nature. Science and Democracy in Europe and the United States, Princeton University, 2005, sobre os sonhos da república dos cientistas, nesta viragem do milénio, quando a mesma se fica pelo mero esclarecimento da procura das pretensas causas e não está preparada para a compreensão (Verstehen). Porque também aqui caímos na esparrela de um cientificismo de economistas e financeiros, a quem Mário Soares dá o diabólico nome de neoliberalismo, mas que muitos liberais denunciaram antes dos socialistas. Aliás, só os macacos cegos, surdos e mudos do "mainstream" é que não notaram o desastre, que, para eles, é o fim do oásis de um paradigma criado e gerido por socialistas democráticos, sociais-democratas e democratas-cristãos.

Os tais que aceitaram a governança sem governo da pilotagem automática do gnosticismo da integração europeia e da globalização, metendo na gaveta o socialismo, a social-democracia e a democracia-cristã, e que, perante a casa arrombada, logo clamam pelo mesmo São Keynes que, através do velho ISCEF, delineou o nosso modelo salazarento de forças vivas em "gentlesman's agreement" com o centro do Estado, com uma economia privada, mas sem uma economia de mercado.

Hoje, já não há o velho Estado, do já enterrado soberanismo, com o consequente proteccionismo do liberalismo a retalho,  o da nacionalização dos prejuízos e da privatização dos riscos, de um pretenso empreendorismo de patrões sem risco, e nem sequer pode aterrar em Lisboa um avião cheio de marcos, para nos ajudarem na ameaça de bancarrota. Aliás, esta governança sem governo reduz o futuro às fichas avaliativas da ministra rodiguinha, corrigidas pelo simplex albicastrense de um secretário de estadão, quase igual ao chefe dos sindicatos educativos, com saudades da correia de transmissão. E o sonho não pode reduzir-se às andanças de um chefe de governo fingindo ser o Oliveira de Figueira nas cimeiras ibero-americanas. Porque o Fernão do outro Magalhães também morreu a meio da viagem que agora andam a fazer ao contrário.