a Sobre o tempo que passa: Amizade. Recebido de Teresa Bracinha

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.10.09

Amizade. Recebido de Teresa Bracinha


AMIZADE
Tenho para mim que a desilusão profunda em relação a uma amizade, só depende das expectativas elevadas - e mesmo carinhosas e protectoras -, que nela possamos ter empenhado, com o desejo e a aspiração de, com elas, ajudarmos alguém a abrir caminhos fechados, mas que na altura certa abrimos ao nosso amparo, à nossa partilha do que brilha na nossa vida e oferecemos como luz.

A amizade também pode ter este ângulo por entre outros. Assim, não se concebe sequer que o receptador mais beneficiado de uma amizade deste suco e cujos anos solidificaram, venha um dia a perder a visão da experiência extraordinária que lhe foi proporcionada e nivele, ao nível do chão de vulgares gentes, tudo o que afinal tinha aceitado como fazendo parte de um inconfundível e irrepetível estar.

Tenho para mim, por outro lado, que o amigo não nos engana, fala-nos com verdade e nós acompanhamo-lo com imparcialidade compreensível e lúcida.

A amizade é uma filigrana de encontros, ainda que possam esses encontros deparar-se com um “benefício” maior para uma das partes. Enfim, faz parte da vida que assim seja, sem que se avalie ou pese a eventual desproporção quando exista. Enriquecer e crescer, tanto afectivamente como intelectualmente deve, no meu entender, ser também um propósito da amizade.

Contudo, às vezes, o milagre dos encontros da amizade turva-se. Seja para nos esclarecer ou não, este acontecimento magoa inexplicavelmente.

A amizade e a solidariedade pressupõem-se estáveis como portos seguros e se algum esclarecimento carece a amizade, nunca o mesmo chega pela via da maledicência temperada pelo exagero das inverdades.

Superar uma ou outra crise dentro de uma amizade verdadeira, faz parte do melhoramento que constitui a travessia difícil da vida. Mas nunca, nunca se suja o bom nome e o bom sentir nas costas do amigo, muito menos se esse é aquele a quem recorremos quando nada tínhamos que constituísse um respeito sólido face aos dias dos outros que contra nós se viravam.

A amizade não é algo de circunstância, não é um «como estás, há muito que não te via». Ao contrário, o amigo, quando nos encontra, ilumina-se, talvez porque olha o nosso passado e o dele, o nosso futuro e o dele com a comum óptica de se identificar com o cerne das coisas partilhadas.

Todavia, existe também uma amizade granulada. Esta, quando se expõe desregrada e nas costas do amigo, julga o outro com o fel que lhe acode como único meio de denegrir, sujar, perturbar o branco, na expectativa de que haja quem o ouça nivelado pela mesma mola ferrugenta e deturpe a essência de quem, efectivamente lhe é superior.

Nunca se careceu de minimizar a não ser a realidade que é superior e genuinamente exposta à avaliação do mundo com nota inequivocamente graduada.

Só essa realidade é atacada pela má consciência de quem por essa actuação se esquece que se está a revogar a si mesmo. Ora, esquece esta tipologia de amizade que deveria estar prevista e punida pelo código da moral de cada um que, na amizade não há lugar para o poder miserável da mais mísera maldade. Na amizade, os amigos são magnânimes um para o outro e instintivamente expulsam tudo o que possa perturbar esta grandeza.

Diria mesmo que o encontro com a amizade, interrompe a trama aviltante da vida quotidiana, logo, constitui um momento de serenidade acima das intrigas e dos complôs.

De muitos modos, os seres inventaram a máscara antes do rosto, o exterior antes do interior, mesmo as coisas que pertencem ao oco, são instrumentos de afirmação social.

A maledicência, diga-se, agride de jeito colectivo o ausente como se deste modo se evidenciasse a virtude que afinal se não tem.

Um amigo nunca dirá mal de nós. Se alguém o fizer, ou nos defende ou ir-se-á imediatamente embora. Não se calará, nem mesmo para ouvir e vir-nos depois dizer, porquanto não lhe acode nenhum prazer em nos perturbar, mas para nos proteger do que é mesquinho e insalubre, carece, às vezes, de nos transmitir cuidados que não estamos a ter e cuja falta nos pode magoar como vidros cortantes da mesquinhez sempre repelente, sempre traidora, sempre infértil.

Quem tenta destruir uma obra como a da amizade, sabe aviltar o linho em estopa reles, e afinal sempre foi ambivalente, oportunista, feliz do cadáver vencido, dependente da sua agressividade para esconder mediocridades e inseguranças agressivas, e o pior é que não lhe acode como remorso uma força que construa um mundo melhor, que impeça as arbitrariedades, as injustiças de não sermos eleitos pelo mérito já que a maquinaria do repugnante tem o poder da cólera de quem só por si não sabe ser.

Afinal, já bem bastava que o nada valesse muito neste mundo; que o dúbio encarnasse a pele de uma suposta amizade; que a inveja surja exponencialmente quando é outro o portador do que enfim até nem entendemos; que o rancor justifique a utilização de palavras ou de sujas insinuações que só demonstram afinal o que se será capaz de fazer já que se julga o outro por nós.

A amizade não exerce represálias, nem contém o sentimento da vingança. Mas, infelizmente há quem confunda a amizade com qualquer outra coisa. Desconheço qual é essa outra coisa, sei apenas que a amizade é um ideal que nasceu para ser respeitado, para que o mundo se encha de amigos e estes, ao verem-se, sorriam.

Pedir a um amigo, não constitui qualquer problema, é tão natural como oferecer, como dar um presente pudico e virtuoso.

Também se mencione que, partilhar na amizade uma parte da nossa vida privada, é tão só a expressão de uma viagem, ao menos, parcialmente a dois. Mas uma viagem cujo estado permanece dentro da palma da mão secreta que constitui a privacidade do amigo que abraçámos.

Com o passar dos tempos, nós mudamos, os nossos problemas mudam, mas se encontramos o Ser que encarna a amizade de sempre, temos a impressão de que o encontro último foi ontem, que não houve intervalo, nem falta de mão, nem de abraço e o olhar estende-se e não há nada de semelhante na nossa experiência quotidiana.

Assim a amizade verdadeira é desconcertante, singular e motivo da lágrima encantada se expor.
Teresa Bracinha