a Sobre o tempo que passa: As quybyryadas, os dicionaristas e a empregadagem

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

27.10.09

As quybyryadas, os dicionaristas e a empregadagem


Quem me dera ter, todas as semanas, motivo para temas como os de Deus e dos Homens, brasas que avivem o belo dos combate das e pelas ideias. Infelizmente, como não sou dilecto membro de um qualquer rebanho eclesiástico, nem disponho da mobilizada revolta de certos ateus e agnósticos, fico, muitas vezes, sem representante no ringue maniqueísta onde Jeová e Marx se insultam, puxando as barbas ao argumento. Infelizmente, prefiro ter a nostalgia do panteísmo estóico, bem como a energia semeadora daquele humanismo renascentista e iluminista que, no século XIX, se assumiu como liberal e, ainda hoje, não cedeu aos passos ditos em frente dos regressos ao socialismo, ao marxismo e aos milenarismos gnósticos, sempre com a desculpa da revolução por fazer, a caminho do abismo.


Porque quando o sol outonal nos aquece a tarde, apetece mesmo que o tempo não passe e que os raios da vida nos façam chegar à eternidade, mesmo quando sofremos a agrura de aturar certos emplastros que, na gaiola dourada dos seus prémios de carreira pelo servilismo, chegaram a eurodeputados e, de vez em quando, nos mandam sentenças empacotadas pelo correspondente da televisão pública. Ainda por estes dias, dois deles, depois de assistirem a um qualquer colóquio, nos queriam ensinar o que devia ser a universidade. Um, que, toda a vida, foi empregado e doutorado em empregomania, depois de ser ministro e ter voltado a presidente de um dos nossos institutos públicos de formação de empregados, dizia ter ouvido de um qualquer húngaro, que o destino da universidade era deixar de formar empregados e tratar de formar empresários, enquanto a outra, também despedida por má ministra, dizia que devia haver mais verbas para ela e os camaradas que com ela engenheirizam. Desliguei o aparelho pelo indecente e pelas más figuras.


Preferi recordar que ainda há dias, em dia dito de mudança da hora, houve uma hora que não foi tempo e, nesse intervalo, senti que podia voltar a ser eternidade. Pelo menos, ganhei coragem para reler a fundo um dos mais desconhecidos criadores literários portugueses da segunda metade do século vinte, o visiense pintor de Moçambique, António Quadros de baptismo e João Pedro Grabato Dias de pseudónimo, autor desse provocante texto dito "Quybyryadas", de 1972, que, nem por ser da esquerda anticolonial, conseguiu varar as fronteiras do pensamento oficial dominante dos programas oficiais que nos proíbem o ser. Leiam a dissertação de doutorado de Murilo da Costa Ferreira, de há dois anos, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e releiam estes versos sobre quem, na verdade, sou: Meu bisonho maltez, pobre ganhão/ bruto pastor igual às alimanhas/ que nem falar humano a ocasião/ te ajudou a apurar.


Quase lhe acontece o mesmo que ao arquitecto Pancho Guedes, tal como a muitos outros ditos malditos, só porque os topógrafos desta detecção de qualidade têm as máquinas avariadas e não conseguem ver um boi à frente dos óculos embaciados. Porque continuamos a repetir as análises daquele esterco feito deputado da primeira Assembleia Nacional que, do alto de São Bento, qualificava Fernando Pessoa como um falhado da literatura. Continuamos a ser embalados pelos discursos de música celestial dos cadáveres adiados, procriadores de tachos e bajulação, que os dicionaristas do regime elevam às alturas comemorativas das alianças de conveniência com o ministerialismo que toma posse.