Todos eles são posse e cerimoniais de estadão, no paço real da Ajuda. Eu estarei o dia todo, no cimo do mesmo monte, em aulas até às tantas. A manhã começa enevoada, cheira muito a interregno.
Sócrates II irá reinar no cair da folha e na invernia que, certamente, chegará de súbito, ao virar da esquina de um tempo que até o decreto teve a pretensão de mudar. Os Gatos voltam aos anúncios da PT, Manela já não tem que aturar a verdade de comentadores, ou comentadeiros, e até o debate teológico saramagueiro voltará aos clubes de reservado direito de admissão, como seminários e sacristias.
Os que, desajeitadamente, se assumiram como mensageiros fundamentalistas do rebanho foram naturalmente desautorizados pelos pastores. A propaganda populista, herdeira do caceteirismo e dos salazarentos, em ritmo de coloquialismo rasca, não se coaduna com a media via eclesiástica que, apesar de beneficiar do impulso, prefere fingir que não é extremista.
Entre Saramago e os teólogos sucederam-se espectaculares empates. Nenhum venceu nem perdeu, porque ambos não queriam senão um pretexto para o reforço da fé que cada um dos espectadores, auditores e leitores tinha antes dos jogos verbais. Até porque cada um dos contendores iria naturalmente proclamar que não tinha fé na própria fé do outro, assim eliminando espaço para outras concepções do mundo e da vida.
Destaco a malandrice argumentativa do padre Carreira das Neves contra o velho marxista, quando este deixou que o teólogo lhe espetasse a etiqueta de estoicista, assim matando vários coelhos com um só sofisma, conforme a técnica de enredo da velhice dos padres eternos.
A subliminar inserção do marxismo saramaguiano numa corrente do humanismo clássico, a que vai do estoicismo ao iluminismo, com o processo a Damião de Góis pelo meio, é tão escolástica quanto o reconhecimento, pelo romancista, de estar encharcado de valores cristãos. Tão sincreticamente confusas quanto a posterior confissão do revisionismo católico. Serve para misturar marxismo e cristianismo e para demonizar estóicos, renascentistas e iluministas. Mas como todo o mundo é mudança, reconheçam-se as mudanças de todos.
Porque o Padre Carreira confessou o óbvio: Roma, e ainda bem, alterou a posição sobre a Bíblia há menos de cem anos, e só por estes dias é que começou a ser editado um texto ecuménico, mas ainda sem a plenitude dos cristãos, nomeadamente dos ortodoxos. Roma continua a deixar dizer que os estóicos ainda são de antes do ano zero, que os humanistas ficaram todos tridentinos e que o iluminismo não passa da caricatura jacobina, vestida de Combes e Afonso Costa. Os pequenos aprendizes de Torquemada, de ambos os lados da barricada, até poderão exercitar-se com os inúmeros traços heréticos e processualizáveis que escondo neste exercício textual, cheio de calhaus que atiro às bestas do costume.
Mas quando uma questão de transcendente, em torno do Livro, do volume da lei sagrada, como supremo livro da tradição, independente de qualquer religião revelada, se torna paixão da opinião pública, há que louvar os desencadeadores de uma polémica que subiu às alturas do largo da praça e impregnou os profanos que todos somos, mesmo com intervalos de sagrado. Os afectos e os intelectos, assim eriçados pela autenticidade, deixam boa nostalgia, contra os cinzentismos oportunistas destes dias que nos encarquilham em niilismo.
Não esqueço a ficha saneadora de Saramago nos tempos em que era inquisidor e muralha de aço do companheiro Vasco, mas subscrevo simbolicamente o respectivo programa de direito à dissidência e à heresia, emocionando-me em adesão aquela confissão patriótica, esse lugar comum entre adversários que me salgou a face, pelo telúrico de uma comunidade de coisas que se amam que talvez seja uma religião secular, herdada do romantismo.
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