a Sobre o tempo que passa: Romantismo, nacionalismo, guerrilhas, Kleist e Condeixa

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.3.10

Romantismo, nacionalismo, guerrilhas, Kleist e Condeixa


Há uma certa história que incomoda alguns adeptos do processo histórico: aquela onde é o homem que faz a história e não a história que faz o homem. Onde o homem faz a história, mas sem saber que história vai fazendo. Reparo que está novamente em cena em Portugal "O Príncipe de Homburgo", de Heinrich Von Kleist. Reparo que, há mais de quarenta anos, Goulart Nogueira encenou a peça. Na Oficina de Teatro dos Estudantes de Coimbra. Como também a traduziu em 1961, editando-a então na Contraponto de Luiz Pacheco. A pedido do Teatro do Gerifalto, de António Manuel Couto Viana. Apenas um registo de verdade contra o banimento. É tudo uma questão de romantismo contra os invasores napoleónicos. Sempre.

Também por cá, José Acúrsio das Neves esteve ao lado de José Bonifácio de Andrade e Silva. Que reaccionários e maçons deram as mãos em nome da pátria. Como, depois, as voltaram a dar na Patuleia. Só historietas de literatura de justificação de posteriores regimes, sobretudo quando eles entram em crepúsculo de banhas de cobra comemorativas, ou de procura de historiografias oficiais de livro único, para uso, como catecismo, nas escolas também oficiais. Só então é que procedem a saneamentos de intolerância, fanatismo e ignorância.

A liberdade não é mera abstracção geométrica, mas a consequência de uma pluralidade de indivíduos autónomos. É uma vivência feita comunidade, que só existe quando existem homens livres que são autores e não meros auditores, dado que estes acabam quase sempre como meros súbditos, quando preferem a servidão do bem-estar e da segurança, à imprevisível revolta dos escravos, em nome da justiça.

Também Albert Camus salienta: a liberdade é poder defender o que não penso, mesmo num regime ou num mundo que aprovo. É poder dar razão ao adversário. E, mesmo comparando-a coma justiça, clarifica: Finalmente, escolho a liberdade. Pois que, mesmo se a justiça não for realizada, a liberdade perserva o poder de protesto contra a injustiça e salva a comunidade.

Goulart foi uma espécie de D'Annunzio em português e é uma homenagem atribuir-lhe o qualificativo de fascista, um dos poucos que conheci, inteiro e artístico. Kleist foi o pretexto para um encontro com o nacionalismo romântico, onde tudo, até a palavra fundamental, havia sido inventada por Rousseau. Porque, como ensina Ortega y Gasset, outro dos meus mestres, ao homem lhe sobe o coração à cabeça, quando o sentimento passa a predominar sobre a razão e acaba por explodir em paixão: o sentimento não se contenta do seu predomínio sobre a razão, como fonte de inspiração literária ou artística: converteu se em paixão, que a cada passo perdia o sentido das medidas correntes da realidade física ou moral.

É desta semente panteísta que se destacam dois aspectos: por um lado cultura do sentimento e da emoção, tornando se, por vezes, anti-intelectualismo; por outro lado, a ideia de reforma total, a ideia de que seria possível o estabelecimento de um reino de Deus, mas pela mediação de um "regnum hominis". Este primeiro romantismo é profundamente um movimento de reacção aristocrática relativamente à nova ordem social capitalista burguesa. Não quero dizer que o romantismo tenha sido uma máquina de guerra da aristocracia contra a burguesia. Não foi, aliás, sentido como tal na sua época, e a inteligentzia, a alta burguesia adoptaram a moda romântica, sem se darem particularmente conta que se tratava de uma moda aristocrática. Quando falo aqui de reacção é, portanto, num sentido neutro: em face das novas condições de vida que o capitalismo triunfante cria, o que subsiste do mundo feudal (nobres e clientela ainda presa à vida feudal) segrega, como reacção, o pessimismo e a evasão românticos.

Assim também foi Coimbra, no ambiente de "fim de regime". Lá aprendi a ser neo-romântico e panenteísta. Com Heinrich Von Kleist. Com Paul Claudel. E até com Fernando Pessoa. Todos encenados na Oficina. Com Goulart Nogueira e com António Manuel Couto Viana. Não são apenas memória que quero esquecer. Continuam a ser saudades de futuro...

E lá para o mês de Abril, irei conferenciar sobre o tema, em Condeixa, comemorando os cem anos desta república. O pretexto vai ser Francisco de Lemos Ramalho, conde de Condeixa e Marquês de Pereira, o trisavô da Ana, títulos que nunca usou por fortes convicções políticas. E aquele retrato de família, onde também aparecem o conselheiro Luís de Magalhães, o filho de José Estêvão, e Jaime de Magalhães Lima, assim se religando a restauração de 1808 à própria Traulitânia, com progressistas casando com miguelistas . Com outras histórias da raiz das guerrilhas patuleias. Das que chegaram à Revolta dita do Grelo, já nos primeiros anos do século XX. E à revolta de Cernache de 1936, onde meus avoengos se insurgiram contra a GNR, e foram condenados e presos durante anos, mas ainda hoje sem lugar nos catecismos da liberdade...