Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
29.4.10
28.4.10
O neofeudalismo das companhias de economia mística que nos vão corroendo a democracia...
Hoje não há comissão parlamentar de inquérito, devido à greve dos funcionários de São Bento e ao medo da administração da entidade mostrar a verdade ao país. Mas ontem a democratíssima e representatívissima comissão permitiu-nos fazer uma viagem pelo neopombalismo das companhias de economia mística, essas entidades a que alguns dão o nome de empresas e por circulam sujeitos nomeados pelos favores e compadrios do clientelismo banco-burocrático.
27.4.10
Valia mais sermos pigmeus, mas ascendendo à cabeça dos gigantes
Quem andou pelas festas de Sant Jordi, com uma rosa contra o dragão e a descobrir a origem das riscas blaugranas, teve que reforçar a mística liberal e a fraternidade peninsular. Foi uma bela jornada de trabalho, sobretudo na Biblioteca Arús, nessa terra de boa gente que é Barcelona, mas que me impedir ir à jantarada do Albergue...
Regresso e confirmo: só tipos de sete línguas e gatos de sete vidas é que se safam nesta encruzilhada. Para além do parlamentarês, do judicialês, do economês. do educacionalês, do medicalês, do engenheirialês e do padrecofilês, temos de levar marretadas frequentes do "paga primeiro, protesta depois", em multas, taxas, impostos, côngruas e gorjas...É tudo uma questão de fluxo de tesouraria...
Com efeito, as parangonas lusitanas estão cheias de árvores queimadas, ramos de árvore, folhinhas, ramículos, borradelas de pássaro e outras questiúnculas das guerrazinhas de homenzinhos... Ate já se glosa um António Martins! Prefiro continuar pigmeu, mas subindo à cabeça do gigante adormecido
Tenho a impressão que o parlamento, mesmo sem maioria absoluta, começa a enredar-se em truques de regimentalismo de certa metalinguagem que o afasta das angústias e das esperanças do homem comum. Porque o óbvio demora sessões e sessões a passar pelo filtro retórico do parlamentarês...
Agora são os comboios, dentro de dias, os camionistas, para que todos andemos de papamóvel, mas não consta que o governo, em sinal de tolerância, esteja disposto a oferecer um preservativo em forma de filigrana, da autoria de Joana Vasconcelos, a Sua Santidade. A Câmara de Lisboa prefere manter, no alto do Eduardo VII o projecto da catedral de Santo Antoninho...
Novidades do "day after", apenas a criação de altos tribunais em Santarém para a concorrência e a propriedade industrial, dentro da feira nacional de agricultura, a mudança do parlamento para o Porto, onde não há "lock out", e a instalação da Liga de Futebol Profissional em Campo Maior...
Queríamos saber se Ele sabia. Mas toda a gente sabe que ele, quando é Ele, já não pode saber, embora soubesse o que toda a gente sabia. A teoria da conspiração sempre à procura de uma casca de banana que possa fazer parangona... Ele é quem É. Por enquanto, apenas...
Porque Vara, conforme o previsto, foi festival de retórica, típico dos registos contidos dos políticos de rabo pelado. Brincou ao gato e ao rato sobre a verdade e a mentira, apesar da metalinguagem de Pacheco, nunca quebrou o "não tenho ideia disso... pode perguntar-me cem vezes que eu digo sempre o mesmo". Nada a acrescentar...
Nesta teatrocracia sem emoção nem a audição de Manela aqueceu as almas, porque, afinal, nem ela tinha alguma coisa para dizer. Só Vitalino tentou que ela desvendasse segredos de alcova no tempo do governo dos afonsinos. Estamos condenados ao afunilamento e mandam os que não se assumem como pigmeus que podem ascender à cabeça dos gigantes para verem mais além. Os que mandam são daquela espécie que é capaz de matar o pai, a mãe, os irmãos e os filhos, para obterem um naquito de poder e honrarias, na sua insaciável sede de protagonismo. Somos dominados por psicopatas sentenciadores que, como cadáveres adiados, vão emprenhando de ouvida e reproduzindo os ódios que lhes transmitem os fiéis e aduladores.
Enquanto persistir esta vaidade predadora dos eucaliptos semoventes, a democracia continuará enredada pelas teias da conspiração dos gerontes que pensam deter o monopólio da cultura política e do bom-senso, reproduzindo o esquemático do sebenteiro de uma banal engenharia de conceitos que apenas disfarça os sucessivos plágios de muitas modas que passam de moda. E o crime tem compensado...
25.4.10
Entre animais humanos e animais não-humanos, mesmo com forma dos primeiros...
Leio cuidadosamente o "dossier" do Expresso sobre a operação dita Mercúrio, mas não do cromo. Sou obrigado a concluir sobre o supérfluo da gravitas de uma comissão parlamentar de inquérito, agora em curso de discurso. Para mim, já está tudo, mas mesmo tudo, esclarecido. Basta conseguir ler as linhas e compreender as entrelinhas e não ter que as traduzir para parlamentarês. O que apenas servirá para confirmarmos como certas operações retóricas apenas servem para se medir a distância que vai entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica.
22.4.10
Abril: sim e seu principio. De Teresa Vieira
Tinham passado já 6 meses depois do 25 de Abril. Muitos andavam com uma espécie de beleza de colo. Parecia que qualquer outra realidade tinha perdido prioridade em ser falada, e agora o que seria preciso, o que era mesmo fundamental, era defender o não empobrecimento da libertação.
E muitas realidades faziam parte de uma espécie de nutrição dos dias. Recordo que o Francisco que fazia parte do nosso grupo, aqui e além, meio a brincar, meio a sério, nos chamava a atenção para as mulheres grávidas que já expunham o quanto o desejo nestas andanças, também implica um apelo ao nascimento de novas gerações.
Eu sentia que a mobilização estava no ar, mas num clima ainda pouco de vindima em seu tempo exacto.
Muitos já ultrapassavam o «ter mais» numa arma perigosa de intoxicar atmosferas sociais e espirituais, havendo grupos que a nível nacional, reivindicavam como seu, um “ produto” que anteriormente entendiam não dever ser pertença de ninguém.
Coisas destes tempos. Havia de facto muita energia centralizada e havia também núcleos que não eram mais do que aquilo que a esperança deles fazia: e eram afinal estes últimos, aqueles para quem o espaço deles e o dos outros sempre existiria.
Comecei a conversar mais com o Francisco acerca de uma certa solidão que aqui e além tornava impotente o individualismo de nos encontrarmos na grande festa. A festa que mudaria o género de vida. Em rigor, queríamos uma mudança construtiva e havia um tempo certo para evitar o suicídio das utopias que refrescam os dias quentes.
O Francisco, o mais avançado de todos nós na Universidade, costumava sossegar-me dizendo: olha que a anticiência e a antieconomia são ideologias de justificação de um sistema e ainda estamos na fase das críticas. Ainda não chegámos à « faculdade de letras e de ciências desumanas» que referiam os estudantes do Maio de 68. Olha que ainda é cedo.
Por mim, até concordava, mas espreitavam-me os comportamentos clones de uma noção de progresso que eu não entendia. Não receava as promessas, mas o prometer.
Contudo, também queria a paz, o pão, a habitação, e a saúde, a gaivota que voava, voava e sobretudo todas estas canções desde que ao adormecer me lembrasse de Fernão Capelo Gaivota no meio desta festa pá e em defesa do futuro.
Depois havia o Tejo nesta cidade maravilha. Havia o Tejo que nos protegia no levar e no trazer, no tempo do dar e do receber, exactamente o mesmo Tejo que testemunhara o bom senso no diálogo de Salgueiro Maia ali perto do Cais das Colunas.
Havia também uma ideia de humanizar uma paisagem de vida, às vezes de jeito tosco. Recordo um senhor muito distinto e que frequentava a missa do meio dia em Sta Isabel me ter dito: sabe a menina que eu até acho que Cristo era socialista, mas não o posso dizer na minha família, donde o voto caladinho é que me guardará o segredo.
Uma outra senhora espampanante nas jóias da missa de Domingo na mesma Igreja, dizia com a pose da bondade possível: ó meu Deus, afinal de que me serviu o casaco de leopoardo ao lado de tantos outros visons, se anda tanta gente com frio, coitadinhos. E acrescentava, não receiem, lá fora também é assim.
Tudo isto envolvia perigos, mas eu estava disposta a corrê-los e o meu grupo também. Achei estranho que tentassem ocupar a casa do meu irmão Zé que concluía na altura a tropa em Leiria. Estava a perder-se até a estética do comportamento? Não sei dizer. Estava de acordo com muitas coisas e pensava-as diversamente.
Nestes momentos, ou Chopin, ou Sérgio Godinho, ou os Poemas de Ponta e Mola, ou Tolstoi, alguém me haveria de valer.
Sentia que vivia num país esfomeado de oposição, em que todos eram espelhos uns dos outros e que havia que romper certas cumplicidades recíprocas, para que não existisse o poder do unanimismo que tende a tratar como criminosos, aqueles que não queriam homologar-se.
E agradava-me o paradoxo ou a sua descoberta mais viva nesta liberdade. Talvez por ele ter sido quase sempre proibido. Se calhar eu até fazia como Unamuno que não acreditava na imortalidade da alma, mas vivia como se nela acreditasse.
Assim, não pensava lá grande coisa da política ou no chegar a algo de perfeito através dela, mas achei que era necessário viver e acreditar como se achasse que sim.
Já então o fenómeno literário fazia parte do meu horizonte e ansiava que ele tivesse uma autonomia na ordem cultural e que ultrapassasse o substituto do real e pudesse, em letras muito gordas, ser sempre um título revisitado de Fernando Pessoa, aquele que sempre disse que “ o mito é o que fica quando tudo o resto desaparece”.
E lá voltava a morte e vida severina numa circularidade de amantes da margem esquerda do Sena.
E lá regressava a voz do povo do Norte de Portugal numa pulsação de acontecimentos significativos, pois que eles sabiam o quanto era preciso roer séculos para ajudar o verde, tal como a ideia de Ramos Rosa.
E lá voltava a memória do tempo futuro com partidos políticos das mil e uma interpretações, desconhecendo nós, até que ponto saberiam que o futuro é a única coisa que podemos mudar se Robert Heinlein não estiver ausente das ideologias.
A dificuldade era também a de não falarmos como os adultos que afinal não tinham tanta importância quanto nós, ainda que as maturidades nos viessem a revelar os segredos quase todos, a verdade é que de nada vale antecipá-los.
E Abril vivia-se também com todos a quererem ter conseguido fazer Abril.
A abertura das prisões proibia que o outro fosse coisa a possuir, mas a responsabilidade era de muitos modos gerida como uma suave tecnologia de maneio.
Ainda assim, não conheci ninguém que me referisse sentir na sua história uma expiação infindável de uma falta original. Não, a culpabilidade mudava de mão em relação a tudo, até para fugir ao olhar da sociedade sobre ela.
Havia também uma normalização mecânica do conceito de trabalhador e de intelectual. Recordo-me. Ponho-me dúvidas ainda hoje sobre se estas palavras alguma vez foram repensadas tal como se nos apresenta o mundo.
Do nosso grupo de cinco amigos, faltou-nos poucos anos depois, a nossa Dulce raptada por uma morte sem juízo e ainda hoje quando nela falamos, sempre sabemos que a nossa memória a segue numa qualidade de viagem que dimensões revolucionárias não explicam, e no entanto foram sentido e iniciação.
E Abril ia sendo também o beijo origem e meta, sim e seu princípio.
Deslumbrava-nos que nada continuasse como dantes.
No meu grupo de amigos éramos peritos em tornar coisas mundanas em coisas extraordinárias. Achávamos que tinha chegado a nossa hora de criarmos um templo à vida.
Em Dezembro fizemos um presépio em minha casa e a Dulce trouxe uma pequena porta de madeira. Colocámo-la à entrada da gruta e por cima da cabana escrevemos:
Eis a pequena porta por onde se pode entrar e ver o Messias.
E numa outra região doutrinal do nosso presépio de 1974, colocámos um pedaço de espelho que fingia ser lago e uma seta de papel indicava-o como sendo o local dos traços do resgate a todo o tempo.
E num futuro diverso e comovido, neste Natal de 1974, demos as mãos sob o céu livre da História.
Teresa Vieira
21.04.10
Sec. XXI
21.4.10
Um imenso império colonial.... sem citar Mário Soares
19.4.10
A democracia pode ser usurpada pela partidocracia...
17.4.10
Os pássaros atentos (ainda Abril). De Teresa Vieira
Ele é visceralmente contra um estado de espírito como o nosso. Ele nem o compreenderia sequer. Ele sabe dar receitas como uma dona de casa, certo de que o Estado se reúne na cozinha em hora de arear o fogão.
Assim nos referíamos a Pinochet enquanto escutávamos as notícias daquele país amarrado, enquanto estabelecíamos paralelos com Salazar.
E o Luís até dizia que o mundo se construiria em liberdade, a partir dos pólos opostos plantados por estes personagens que, ainda assim, conheciam a subtileza malandra no raptar da consciência individual, razão pela qual, em protecção do futuro, deveríamos estar mais atentos.
Falávamos de Pinochet ao mesmo tempo que nele colocávamos todas as sociedades governadas por pinochês, o que nos fazia ainda mais orgulhar da jovem novidade que o 25 de Abril nos propunha em plena conciliação com uma outra vida.
Para nós, diga-se, os regimes totalitários de direita ou de esquerda eram tão cilindradores do mínimo vital de sobrevivência, quanto o era numa perspectiva trituradora, o pior de uma qualquer estrutura de raciocínio monolítico. Isso, julgávamos que tínhamos por bem sabido.
Mas, diria, que o que mais nos confundia no explicar do que íamos vivendo era, na verdade, esse sentimento que nos era comum e que nos levava à conclusão evidente de que acreditávamos bem mais na dinâmica que sentíamos na libertação, do que na tal liberdade, que ainda nos parecia demasiado estática e propriedade a mando de alguns.
Atravessávamos o Jardim da Estrela quase todos os Domingos ao final da tarde. Respirávamos as árvores com a devoção de quem tudo agradece depois de um certo momento da vida para a frente.
Um dia, sentámo-nos numa borda de relva do referido jardim e recordo-me de ter dito que tinha escutado uma estória mirabolante e que envolvia a P.I.D.E. Mais ou menos isto: a P.I.D.E prendia o senhor A e depois todas as pessoas que o iam visitar à prisão, ou ficavam presas também ou grudava-se-lhes o estatuto de suspeitos.
Queres dizer com isso que podemos estar sob espreita também daqueles que agora mandam? Pergunta a Dulce.
Não é isso, respondi, é mais o receio dos que querem subir na vida através das maneiras de salvar o mundo. Acho que são um perigo público. Acho que os sinto até nas pastelarias e, contudo, não sei dizer exactamente quem são. Receio os que leram muito e os que discutem muito os livros e os filmes e receio os das couves das províncias urbanas. E não te sei bem dizer o que este sentimento tem a ver com a prisão do senhor A e de todos os outros.
Fez-se um silêncio sem pausa nos olhares. Aí, como quem faz doação permanente da esperança, acrescentei que se calhar não era nada como eu estava a dizer, ou que se calhar nada era mais do que a praia-mar e a baixa-mar a ensinar-nos que há nas marés vivas algumas rupturas. Pois, era isso. Fazia parte da sucessão dos dias e das noites, compreender. Fazia parte do nosso projecto, compreender. Era isso.
O Rui que até então se mantinha calado, olhou-nos e disse:
- Eu ando também um pouco extravagante. Como sabem a minha avó morreu há dois meses e agora tenho pensado que ela regressa ou que me vai escrever uma carta. Isto devo ser eu na baixa-mar. Não é?
Rimo-nos todos num acto de súbito e enternecedor e inominado juramento.
E de repente era tudo tão amplo naquele Jardim da Estrela. Era tudo tão novo. Era também físico e olfactivo o tal compreender.
Estávamos ali numa condição maravilhosa, sem nome.
Por sob as pálpebras a dimensão das folhas húmidas; nos lábios, as palavras em círculo como se retornassem de uma volta ao mundo e nos agrupassem as ideias.
E afinal, enfim, nada era muito mais do que o mecanismo misterioso do teatro do mundo a entrar em funcionamento: os pássaros, esses, atentos.
Teresa Vieira
17 de Abril de 2010
Sec. XXI
(Imagem picada aqui)
14.4.10
Quem está mal, muda-se, entra em cisma, torna-se herético, protesta em Reforma
13.4.10
Viagem aos meandros sub-estatais do sistema elogiado pelo banqueiro do regime...
12.4.10
Somos todos polacos!
Morreu o Presidente da Polónia e quase uma centena de altos dirigentes de Varsóvia. Dirigiam-se à Rússia, para as comemorações do massacre de Katyn, quando, em 1940, o estalinismo assassinou cerca de vinte mil membros da elite político-militar da Polónia livre. Lech Kaczynski, até há pouco ridicularizado por certa politiqueirice ocidental, era um resistente ao comunismo da geração do Solidariedade e da ascensão ao papado de João Paulo II. E tinha como valor supremo uma pátria que foi vítima dos totalitarismos nazi e comunista. Hoje, é uma das fronteiras orientais da nossa liberdade europeia. E na Rússia já não residem as garras da vingança, mas os sinais libertacionistas de Soljenitsine, embora, de ambos os lados haja expectativas frustradas e sonhos por cumprir. Mas o caminho da casa comum europeia e da democracia pluralista e justa faz-se caminhando e semeando, de geração em geração, peregrinando aquelas raízes profundas que nos podem dar saudades de futuro.
9.4.10
Abril 1974: o desafio, a experiência fundamental. De Teresa Vieira
Quando desci a Av. Fontes Pereira de Melo no dia 25 de Abril à noite, reparei nos turistas do hotel Sheraton com o pasmo no rosto, a verem as tropas sem cessar rua acima e rua abaixo. Estavam calmos os turistas, tinham nos olhos uma aventura infantil, difícil de descrever. Um deles disse «c´est une révolution poétique!» E fotografavam tudo o que podiam.
Realmente Abril apoderara-se das ruas em convívio festivo e instaurando uma prática transgressora de um não sei quê que me fazia pensar nos acontecimentos-esfinge tal como os imaginava.
Éramos cinco amigos, três rapazes e duas raparigas, todos quase, quase na idade de votar e não sabíamos interpretar esta nova prática do dia de Abril que acontecia assim, e que implicava intervenção, exercício de poder, linguagem, comportamentos, enfim, perspicácias que não tínhamos ainda.
Entre nós decidimos chamar a este dia 25 de Abril “O dia do possível” . E achámos bonita esta designação. Achámos que significava desafio, experiência fundamental.
Para nós, o que estava a acontecer,era algo definido mas incerto. Contudo, a incerteza era em nós dinamizadora e não factor de imobilismo: daí o desafio de termos saído à noite atravessando a pé as principais artérias de Lisboa.
O Luís lembrou-se que na Capela do Rato nos tinham dito que nas paredes da Sorbonne no Maio de 68 estava escrito «Não tenho nada para dizer mas quero dizê-lo».
Concordámos todos em silêncio com o que o Luís nos queria transmitir. Um pouco mais tarde, já na Av. da Liberdade, questionei o grupo, dando à voz um tom solene, a acrescer à pergunta:
- Isto é o momento em que nasce e se impõe a supremacia da imaginação sobre a realidade!?
- Não sei – respondeu a Dulce – mas sinto que o essencial está por dizer e que afinal não temos cultura política para interpretarmos o que está a acontecer. A minha mãe – continuou - disse-me muito zangada que se eu saísse de casa hoje, para ir ter convosco, ia entrar por uma brecha que me fecharia dentro dela e nunca mais nos víamos.
Pois, não sei, pensei para mim, mas achei que estava no meio do desafio de um nó que já não me ignorava. Achei que assistia ao levantar da democracia e que ela se estava a espreguiçar de um longo sono , e entendia-a como a descoberta do que me era estrangeiro. E isso bastava-me para acenar aos soldados que para nós erguiam os cravos.
O Rui que era o intelectual pessimista do nosso grupo, a dada altura, exprimiu o seu receio face ao amanhã e dizia que se até ao dia 1 de Maio próximo, se continuasse a ter a sensação de que nascia outro modo de vida, então ele acreditaria que já não iria para o ultramar com o reconhecimento oficial de que podia matar.
Concordei e disse ainda que não era preciso aguardar pelo 1 de Maio. O que era preciso era preparar eleições e não permitir que elas fossem um mero folhetim para que a era democrática se não auto apunhalasse.
E entretanto aproximaram-se alguns soldados e gritaram-nos:
- Para casa, vá para casa depressinha! A hora não é de passeio.
E todos nós achámos que existia uma ternura imensa na voz de quem se nos dirigia armado. Recordo que imaginei de súbito a sair daquele cano de aço da arma de um deles, um sopro de pétalas de indecifráveis cores de nobres ideais.
Enfim, era a esperança colectiva àquele grupo de cinco de se libertar de um doutrinarismo de raiva seca e frustrada que, de um modo ou de outro, entendíamos, ao jeito da nossa idade a razão última do existir deste fantasma real.
Lembrei-me dos viveiros da Ericeira e achei que lá dentro o mar chorava por uma outra forma de existir e que essa forma ansiada era esta: sem orla.
Demos as mãos, os cinco. De súbito. E não engoli o choro do que não entendia por completo. Antes, as lágrimas diziam-me que hoje o dia não era para impor respostas, nem linhas políticas. O dia era tão só para ser preferido.
Desconhecia se o futuro me pertencia, mas queria aquele presente meu e tão seguro, quanto certo era que apenas vivíamos muito, e às vezes apenas, a vida que nos deixavam.
A dada altura, achámos que nos devíamos abraçar todos num controle único de força que festeja a festa que dança uma verdade, que acredita na realidade dos desejos e numa conciliação que ainda não entendíamos, mas raiz.
Sentimo-nos muito especiais, um tanto ilhéus de uma resistência na protecção de todos os sonhos. Sonhos de gente jovem de tão jovem que recusávamos o poder para recrutarmos a utopia.
Também imaginei que um dia aquele 25 de Abril estaria em livro, e que a partir daí ,algures no mundo, todos podiam encontrar-se com o que estávamos a viver naquele dia, naquela noite em que Portugal se pensou.
M. Teresa Ribeiro Bracinha Vieira
8.04.10 – sec. XXI
6.4.10
Muitos portugueses são dotados de uma ponta de misticismo...
Ontem, lá fui à minha santa terrinha, numa conferência que tinha como pretexto invocar carbonária, maçonaria e república, no contexto da implantação da república. Foi emotivo esse regresso à memória de menino e moço desses campos, marcado pela experiência política dos meus seis anos de idade, quando vi pela primeira vez a colar um cartaz de propaganda política nas paredes da casa da minha avó, no Largo da Praça de Cernache: era o Dr. João Ribeiro que afixava um de Arlindo Vicente, antes de se tornar num apoiante de Humberto Delgado.