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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.10.04

Manda quem pode, obedece quem deve



Todo o país passou a ler o "Guia dos Perplexos" diante de sucessivas declarações dos ministros políticos sobre a comunicação social, porque, depois da tempestade que vai de Rui Gomes da Silva às cabalas, chegou, agora, a vez de Nuno Morais Sarmento que, sem dizer nada de novo, ou de muito grave, apenas proclamou em voz alta o que quase todos os detentores do poder governamental pensam e o que muitos deles fazem, fizeram ou farão. Porque entre o que os presentes figurões ministeriais dizem e o que Marques Mendes fez, há as notáveis semelhanças de Luís Delgado não ter a pujança intelectual de António Ferro ou de um Prémio Nobel que foi director do "Diário de Notícias" durante o gonçalvismo. Mas quase todos interferem, directa ou indirectamente, no alinhamento dos telejornais, à semelhança do que fez o soarismo nos seus tempos áureos. E ninguém consegue prová-lo, tal como ninguém encontra vestígios de corrupção, sinais de grupos de pressão ou sinais de grupos de interesse.


Sarmento nunizou o seguinte: Primeiro: que "deve haver uma definição por parte do poder político acerca do modelo de programação do operador de serviço público". Segundo: que "os responsáveis políticos que respondem perante o povo". Terceiro: que "não são os jornalistas nem as administrações que vão responder perante os eleitores" pela informação ou pela programação da estação pública. Quarto: que é necessário "haver limites à independência" dos operadores públicos sob pena de ser adoptado "um modelo perverso" que exige responsabilidades a quem não toma as decisões. Quinto: que os ministros, face aos jornalistas dos órgão públicos de comunicação social, não têm o "direito a mandar", mas "a ter opinião". Tudo lapsos de linguagem. Ministro não pode demonstrar autenticidade.

Julgo, contudo, que, com este governo, nem a Emissora Nacional vai ter o seu Henrique Galvão nem a RTP o seu Ramiro Valadão. Pelo que, infelizmente, não teremos nem Pátio das Cantigas, nem Zip Zip. Olha para aquilo que eu digo, não olhes para aquilo que eu faço. Porque quem leu Goebels sabe que a boa propaganda não deve parecer propaganda, mas serões para trabalhadores e alegria no trabalho. O drama está na sucessiva queda dos ídolos da nossa intermediação, desde Carlos Cruz a Herman José, e com desaparecimento da homília dominical de Marcelo Rebelo de Sousa. Estamos órfãos de produtores de símbolos, temos saudades do Artur Agostinho. Da Aldeia da Roupa Branca. Do António Silva e do Vasco Santana.

Com efeito os produtos do sistema político, as decisões políticas, não se reduzem às clássicas funções estaduais (o fazer regras do poder legilativo ou rule making, o executar programas do governar ou rule application, e o aplicar regras em situações contenciosas do rule adjudication ou poder judicial), dado que há um outro campo de produção de tal sistema, a comunicação política, a troca de informação entre governantes e governados, bem como a própria troca de informação horizontal entre os governados.


Por outras palavras, a função de comunicação política é, ela própria, tanto um produto nitidamente político, como o sangue irrigador dos canais nevrálgicos do próprio interior do sistema político.

Com efeito, a troca de informação, constitui o fluído através do qual se procede à irrigação do sistema de nervos estadual, sendo, por isso, o elemento fundamental do sistema político.

A questão da informação, da circulação da informação e do controlo da informação, constitui a questão fundamental do sistema político. Aliás, governar é proceder à retroacção da informação. É converter os inputs em outputs, converter os apoios e as exigências em decisões políticas.

É pela informação, pelos sensores dos centros de recepção de dados, que o sistema político contacta com o respectivo ambiente, com os outros subsistemas sociais e com os outros sistemas políticos.

É pela operação de processamento de dados, confrontando mensagens do presente com informações arquivadas no centro da memória e dos valores, que o sistema político pode, ou não, adquirir autonomia e identidade.

É depois, no estado maior da consciência, onde se selecciona a informação presente e passada e se confronta este conjunto com as metas programáticas, que o sistema político prepara a pilotagem do futuro em que se traduz a governação.

Os meios de comunicação social não são pois sociedade sem política, não são comunidade sem poder. Todos os meios de comunicação social são meios de comunicação política. Eles estão, aliás, no centro da política. São uma das principais bases da política, mesmo que a respectiva titularidade seja privada.

O processo político, o processo de conquista do poder, se adoptarmos uma perspectiva da poliarquia pluralista, consiste num processo de conquista da adesão do governado.

O processo político não se reduz à luta pelo poder supremo ou à conquista do poder de sufrágio. O processo político é global e desenrola-se em todo o espaço societário.

O poder político não é uma coisa, é uma relação. Uma relação entre a república e o principado, entre a comunidade e o aparelho de poder e destes com um determinado sistema de valores.

Tal como o Estado, enquanto quadro estrutural de exercício do poder, enquanto estrutura de rede ("network structure"), enquanto espaço de regras do jogo e de enquadramento institucional do processo de ajustamento e de confronto entre os grupos, não é também uma coisa, mas antes um processo.



O poder político é, conforme a clássica definição de Weber, uma estrutura complexa de práticas materiais e simbólicas destinadas à produção do consenso. Isto é, um poder político, ao contrário das restantes formas de poder social, implica que haja uma relação entre governantes e governados, onde o governante exerce um poder-dever e o que obedece obedece porque reconhece o governante pela legitimidade deste. Em suma, o poder político vive sobretudo da obediência pelo consentimento. Assim, o espaço normal do processo político é o da persuasão. O da utilização da palavra para a obtenção da adesão e do consentimento.

Só quando falha este processo normal de adesão comunicativa é que o governante trata de utilizar a persuasão com autoridade, com o falar como autor para auditores, onde o autor está situado num nível superior e o auditor no nível inferior da audiência.

Num terceiro passo vem a astúcia. Isto é, quando falha a comunicação pela palavra, mesmo que reforçada pela autoridade, vem o engodo, a utilização da ideologia, da propaganda ou do controlo da informação.

Só como "ultima ratio" se utiliza a força física ou psicológica, o uso efectivo da mesma ou a ameaça da respectiva utilização para obter o consentimento. Para forçar à obediência independentemente do consentimento.

Podemos pois dizer que o normal da chamada conquista do poder é conquistar a palavra. Que o chefe é aquele que discursa. Aquele que, pela palavra, tenta transformar o conceito em preceito. Que tem a natural tentação de controlar o programa de debates. De dizer que deixa dar todas as respostas, mas que tem a natural tentação de só ele ter o poder de fazer as perguntas.

Chefe é aquele que utiliza os recursos da fase invisível do poder. Que convence os auditores, nomeadamente fingindo que actua de acordo com os respectivos interesses e que, para tanto, até cria interesses artificialmente.

A comunicação social é assim o cerne do combate político. Porque em política o que parece é. Melhor dizendo, em política o que aparece, na comunicação, é aquilo que é.

É pois inevitável o nível de compenetração entre a classe política e a classe mediática. Compenetração que tanto gera coincidências como conflitos, com as inevitáveis relações de amor-ódio. E que dizer da nossa democracia, cada vez mais emaranhada nas teias do videopoder, do Estado Espectáculo e da teledemocracia?

Quem controla a produção de signos controla o poder. Os novos clérigos são cada vez mais os "opinion makers" do videopoder e os anónimos fazedores dos dicionários de opinião comum, o "thesaurus" donde aqueles retiram os argumentos, os lugares comuns, os conceitos, as interpretações dos factos e as palavras.

O púlpito foi substituído pela caixa televisiva. O comentador substituiu o retórico, o histriónico passou a dominar os picaretas falantes e uma salada russa ideológica do politicamente correcto passou assim a impor-se à moral do esforço interior de libertação, como manancial das regras de conduta justa.


Os próprios debates televisivos passaram a ser mais importante que os debates parlamentares.
Os velhos armazéns da memória de um povo, como eram a família, a universidade, o adro da igreja ou do pelourinho das comunidades locais, tendem a ser substituídos pelos arquivos de fast food dos chamados opinion makers que traduzem em calão as ideias vindas de centrais de condensação neo-enciclopédicas com as suas lendas negras.

O papel de controleiro e repetidor passou a caber aos canalizadores oficiosos da opinião, previamente demarcados por quem organiza o programa dos debates e que assim limita o âmbito das escolhas.

Eles impõem-se-nos, assim, como prontos a vestir tendencialmente bipolarizados, mesmo que lhes coloquemos ao lado o elemento decorativo do pária, do marginal ou do extra-sistémico. Temos os políticos que a classe mediática merece e a classe mediática que os políticos que temos também merece. Depois de uma crise do discurso sem sujeito (o tempo das ideologias dos anos do Maio 68), vivemos o espectáculo do sujeito sem discurso (o tempo do artista mediático, onde vale mais o continente do que o conteúdo).

A solução é só uma. Devolver o discurso ao sujeito, devolver a palavra ao discurso, devolver ao homem a palavra. Só assim podemos regressar à política como comunicação e retomarmos a política como coisa do homem, desse animal comunicacional que além dos grunhidos animais, que expressam a dor e a alegria, também é capaz de exprimir o útil e o inútil, mas que não se fica pela racionalidade técnica, dado que teve de construir a política para expressar o justo e o injusto da racionalidade ética que, afinal, constitui o cerne daquilo que no homem tende a subir e a convergir, para cima e para dentro, para uma evolução que é cada vez mais humana e, portanto, mais centrada nas leis que estão inscritas no coração dos homens.