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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.11.04

Apesar do desfile de modelos sobre as ondas, ninguém enjoou


De como os espelhos e amostras da nação nos embaciam...

"Respublica" ou coisa pública, essa abstracção feita de pedras vivas, deixa de o ser, isto é, deixa de ter sentido, quando os laços que nos comunitarizam como povo passam a não ser significações partilhadas. Logo, o chamado aparelho de Estado só tem sentido quando brota da comunidade, isto é, quando a governação emana da república, quando quem manda, apesar de eleito por uma ou várias partes do todo, consegue representar o mesmo todo, sem cair na tentação da ditadura da maioria e protegendo as minorias, mesmo aquelas que, de um momento para o outro, podem tornar-se maiorias, por força do sufrágio.


Os líderes quase diante do Adamastor

Afinal, no dia do mar, apenas houve um desfile de modelos marítimos e a continuação do almoço entre o líder do PSD e o líder do PP. Entre as decisões publicitadas, tomadas nesse bem público destinado às forças armadas, ficámos a ver navios e ninguém meteu água, porque "a coligação nunca esteve em risco" e "os dois partidos aguentaram juntos tempos muito difíceis", salientando-se que, "numa altura de crescimento", não faria sentido "pôr em causa a estabilidade". Entre as patrióticas medidas anunciadas, ficámos a saber que "houve um clima de boa disposição" no Conselho de Ministros, e que "trabalhámos imenso e ninguém enjoou". Paga Zé e não te queixes. A pátria está definitivamente posta à mesa do orçamento, com talheres de luxo, seguranças de requinte, toalhas brancas e ementa desconhecida.


Virados a estibordo, eis oito séculos de história em figura humana

O subscritor destas palavras abertas que, até há pouco, sofria da doença cívica do indiferentismo, nota que começa a resvalar para a zona da revolta, dado que se sente condenado ao estatuto de pária, mas, apesar de não comer, também não calo nem agradeço aos chefezinhos. Limito-me a registar como, dia após dia, vamos perdendo o sentido dos gestos, como no centro dos aparelhos simbólicos se vão desrespeitando intimamente os sinais que davam emoção ao todo e como o doméstico vão ocupando o lugar do público.