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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.11.04

A morte de Arafat



Lá passei a minha tarde na RTP-1 e na RTP-N, comentando ao vivo os funerais de Yasser Arafat. Tentando ser equidistante face a palestinianos e israelitas, apenas recordei que a questão do Médio Oriente, se mal resolvida, pode ser a guerra de todas as guerras e que, mesmo os comentaristas, deveriam ajudar a que a mesma pudesse volver-se na paz de todas as pazes. Infelizmente o grande teatro dos funerais, onde a Velha Europa deu a coreografia, talvez por não ter influência decisiva nos bastidores, é apenas a parte visível de um enorme "iceberg", onde manobram teocracias e serviços secretos.



O corpo do falecido, saído de Paris em direcção ao Cairo, para ser enterrado numa antiga prisão britânica, obriga-nos a recordar como estamos quase perante a segunda parte do filme "Lawrence da Arábia", com as mesmas manobras de informação e contra-informação, até porque tudo acontece numa zona onde a guerra continua por outros meios. Só que, nesta sociedade da informação-espectáculo, onde pensamos ver tudo, e sermos hiper-informados, tratamos deste funeral e analisamo-lo como se fosse mais um casamento real da Europa ou o próximo congresso do PSD.

As mais intrincadas questões de política internacional não são as provenientes da Guerra Fria ou do fascismo e antifascismo, mas antes as que não foram resolvidas e são provenientes da Grande Guerra de 1914-1918. O Médio Oriente é uma delas, com a criação do Lar Nacional Judaico e efervescência do anti-semitismo, com a consequente emergência do sionismo. E aí temos, em plena Terra Santa o drama de duas nações no mesmo território e de uma nação sem Estado, como é a dos palestinianos.



Acresce a nossa extrema dificuldade em lidarmos com o sagrado e com a dimensão dramática do político, num sítio onde a teocracia islâmica defronta a teocracia judaica e onde o eventual regresso da teocracia protestante norte-americana é o factor essencial para a superação do impasse. Os palestinianos são um dos mais martirizados povos mudos do mundo, usaram o terrorismo como processo de libertação nacional, tal como os judeus, e chamam agora a esse inicial desvio, um processo militar.



Arafat, um quarto de hora antes de morrer já estava morto. Agora morreu de vez, mas o símbolo permanecerá. Não morreu em combate, não foi bombardeado nem vítima de um atentado e, sem receber o estampido do martírio, nem por isso deixará de ser elevado à categoria de semeador da libertação.

As recentes inconfidências dos conflitos habituais dos governos no exílio, ou as denunciadas intromissões da corrupção não podem ocultar o essencial. A OLP e a Autoridade Nacional Palestiana representam um importante elemento do racional político, nessa vital zona do mundo. Mantém um dos últimos programas de Estado Laico e de pluralismo nesse universo e, sem eles, tudo será bem pior para este mundo.

Só que não convém espreitar o processo com as nossas lentes geométricas da legitimidade racional-normativa. Nessa zona domina a legitimidade carismática (Arafat era rais) e a legitimidade tradicional. Espero que a liga portuguesa dos "blogues" judaicos não me critique por não ser pró-Israel neste conflito, apesar de reconhecer a minha fidelidade aos genes cristãos-novos que até no meu nome transparecem, mas aprendi a compreender o processo através de grandes teóricos judeus que habitualmente cito, mas muitos deles lamentam a circunstância actual, dado que o Estado de Israel, ao ser desafiado pelas tentações teocráticas, está a desmentir a herança de luta libertadora dos grandes teóricos judeus do Ocidente e das próprias vítimas do holocausto. Mas não quero dar sentenças para quem todos os dias enfrenta a morte, em nome de crenças, demonstrando assim que valem a pena as ideias pelas quais podemos dar a vida.