Muitos pés e poucas botas
Circula pela net, com o título de moralidade, uma boca onde pode ler-se, sobre um ministro : O Sr. ... quer pôr as pessoas a reformarem-se com 65 anos mas, pelo sim pelo não, passou à situação de reforma em 01-07-2004 com apenas 56. Se é verdade, não vejo, com franqueza, qualquer atentado à moralidade, porque este domínio é o da politicidade, dentro dos quadros da legalidade. Mudemos a lei. Mudemos os políticos. Voltemos ao princípio, onde estão os princípios. Até porque o dito cujo está bem coberto pelos contactos imediatos de primeiro grau que mantém com o transcendente e as águias do céu e da terra.
O tal ministro fez, eventualmente, o mesmo que muitos outros deputados e gestores públicos e privados, pelo que o povo não pode escandilizar-se nem invocar o direito à indignação. Um deles, o das feitorias económicas, tem seguramente esse categorial de aposentadoria, o que até rima com este país de reformados, à beira mar plantado. E o povo até os vai reelegendo periodicamente. Com alguns deles a serem periodicamente chamados à televisão para fazerem o discurso da moralidade e da pureza democrática. Aliás, bastaria que um qualquer jornal fosse junto da Assembleia da República e listasse os casos, para, depois, cruzá-los com as funções públicas que os mesmos passaram a exercer, e exercem. Onde é que há jornalismo de investigação?
Sei até de alguns ex-líderes partidários nessas circunstâncias. Os mesmo que ainda recentemente foram elevados a peritos de trabalho por conta de outrem de distintas empresas publicamente controladas. Mesmo na universidade pública, onde tão afanosamente se controlaram as acumulações, ninguém discriminou as dos reformados e aposentados, bem como as dos que convenientemente assumiam o estatuto de professores convidados, para acumularem funções docentes sem qualquer controlo. Entre nós, a história continua a ser escrita pelos vencedores, porque, dos fracos, não reza a história. Quando é que acaba o imposto de palhota?
Com efeito, se, por hipótese académica, eu for dirigente da função pública e aposentado de uma companhia petrolífera, posso juntar o útil de ter botas, ao agradável de ser engraxado. Mando nos outros de fora, submetendo-os, assim, pela diferença colonial, e, se tiver sorte, até posso continuar a reinar bem depois dos setenta e dos oitenta, sobretudo, se tiver criado uma rede feudal de dependências e nomeado como sucessor um que seja do meu reino e de minha criação. Por isso é que, neste querido Portugalório, o poder continua a ser visto como simples coisa que se conquista, como algo passível de um ter, onde há os que têm e os que não têm, os que são homens de sucesso e os mal-amados. Quando é que fazemos a descolonização interna?
Não faltam sequer magistrais referências morais da pátria que largaram antes do tempo funções docentes, apenas para abicharem aposentação dourada, antes de se concretizar a reforma de moralidade emitida pelo respectivo partido. Como dizia o outro, não há moralidade, mas só comem alguns... em certas mesas do orçamento. O mal da pátria, como dizia Afonso Costa, é que há muitos pés e poucas botas. Quando é que abolimos o estatuto do indigenato?
Este é o país onde muitos dos concursos públicos continuam a ter fotografia, bem como fantasias de concorrentes inventados pelo concorrente que sempre ganha e onde não há nenhuma central pública que recolha tal informação, à semelhança de outras europeias comissões de mercados públicos. Este é o país das eleições autárquicas que se avizinham, onde, nas centenas de câmaras municipais que temos, se enfileiram os licenciamentos que serão decididos conforme o ritmo das candidaturas. Até porque não há uma lei de bases única para tudo o que é urbanização, apesar de existir um ministério do ambiente. Este é o país que fez nacionalizações revolucionários da noite para o dia, mas onde nenhum revolucionário propôs a nacionalização do solo urbano, até porque, depois, alguns deles, não teriam os tachos que hoje têm. Em vez de botas, use ferraduras. Estão em saldo.
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