Memória de um agrocrata e homem bom
Tive um amigo que foi governante de Portugal e que faleceu por estes dias. Dele não reza a história de nenhum partido, nem a biografia constante do portal histórico do governo. Foi um militante histórico do PSD, dos tempos heróicos da resistência e, na vida pública, ascendeu a director-geral e, depois, a secretário de Estado em três governos presidenciais. Teve o defeito de ser um desses agrónomos sonhadores que lutou por uma agricultura que já não há, como uma concepção do mundo e da vida e como uma forma de desenvolvimento capaz de ligar o homem à terra e de o fazer crescer para cima e para dentro. Uma agricultura onde a sociedade camponesa não era a coitadinha, mas a fonte da nossa independência. Uma agricultura que não era necessariamente fábrica, mas antes raízes e futuro.
O meu amigo Mário Francisco foi, para mim, o paradigma do funcionário público, pela emoção que entregava às respectivas tarefas, pelo pensamento que comandava os respectivos actos e pelo entusiasmo que imprimia nos colaboradores. Era competente, mas sonhava em demasia. Mesmo já de matura idade de de longa experiência, quase parecia um jovem adolescente, pleno de imaginação quando metia mãos à obra. Com ele aprendi que o sentido de Estado podia rimar com honestidade e com convicções. O melhor chefe que até hoje tive foi também escolhido pelo ministro mais sério e competente que conheci, Joaquim Jorge Magalhães Mota. E do Mário já não pode também falar o colega Amílcar Cabral, contando uma cena passada em Dakar, quando o chefe do PAIGC, ao encontrá-lo no hotel, fingiu não conhecer o velho amigo. Até que, pela noite, vários militantes armados de tal movimento vieram acordá-lo e levá-lo para um encontro, onde Amílcar lhe disse: "querias que os tipos da PIDE descobrissem que éramos amigos? Não vês que o hotel está cheio deles?"
Todos nós éramos de outro tempo, do tempo jovem de um novo regime, do construirmos a democracia fazendo-a, passo a passo, contra as memórias autoritárias e o cerco dos servidores do totalitarismo comunista. E todos estávamos mobilizados por uma ideia. Vivíamos em comunhão de acção e não tínhamos medo. Ariscávamos. E fizemos coisas de que nos podemos orgulhar, apesar de muitos as terem esquecido e de outros tantos as terem usurpado.
Mário Francisco Barreira da Ponte, o meu querido chefe, ensinou-me muito desta vida. Mostrou-me os meandros dos "lobbies", dos pretensos homens de sucesso e com ele aprendi que podíamos combater um adversário, sem o considerar inimigo. Que saudades, chefe, desses tempos, quando uma das tuas colaboradoras mais leais até era a histórica do PCP, a nossa chefe de pessoal, a senhora Dona Rosalia Gomes Ferreira, de tão querida memória. E o comunista chefe dos contínuos, cujo nome já perdi, mas com quem me encarregaste de tratar, sem processo disciplinar, um jovem funcionário que andava cercado pelos homens da droga e que conseguimos recuperar, pelo conselho, pela ajuda e por um conceito de direcção-geral como comunidade de trabalho, onde havia pessoas que, apesar de divergentes na cidadania, podiam cumprir um projecto de bem comum.
Um dia foste para o governo para cumprir uma missão e fui ajudar-te. E lá sememámos as bases das primeiras relações com a CEE, num ministério onde nem sequer o Tratado de Roma estava na biblioteca ou nos arquivos. E lá desintervencionámos dezenas de empresas que tinham caído nas garras de um latrocínio a que tinham chamado reforma agrária. E lá lançámos aquele magnífico programa de libertação, ou liberalização da economia, nomeadamente quando extinguimos o regime de preços tabelados para o pão ou a carne, revogando coisas que vinham do tempo do absolutismo pombalista. Desta forma, foi contigo que aprendi o que era sermos liberais na prática e não apenas nos manuais, mas sem perdermos o sonho do mutualismo, da solidariedade, da fidelidade às linhas essenciais dos agrocratas e da memória de um D. Luís de Castro ou de um Brito Camacho. Que saudades, dos amigos, do Quita Quita, do Apolinário Vaz Portugal, do Joaquim Lourenço e desse grande mestre que a todos nos dava o sonho, o grande Professor Eugénio de Castro Caldas, o líder deste plurissecular partido dos agrocratas.
Um dia, depois da obra semeada, mandaram-nos todos para a prateleira. Quando os tecnocratas substituíram os agrocratas e os engenheiros dos fumos da chaminés e das pedras e calçadas tomaram o lugar dos agrónomos, dos silvicultores e dos veterinários, dos que nos mandaram fazer agricultura sem terra, florestas sem gente e pecuária sem bichos e chamaram Europa à coisa. Tenho saudades desse projecto por cumprir, antes de traduzirem a CEE em calão, dessa Europa que também poderia ter sido agricolamente portuguesa, como, antes tinha sido, agricolamente francesa, agricolamente holandesa, etc.
Já não falava contigo, engenheiro Mário, há muitos anos. Por minha culpa. Por tua delicadeza, quando julgavas que me podias incomodar, só porque pensavas que eu era um dependente da mesma figura sinistra que tanto te prejudicou a ti, como me continua a prejudicar e a todos quantos sonham e que se atravessam nas suas ambições. Calaste porque gostavas de mim. Calei-me porque me repugnava mexer em assuntos canalhas. Mas ficou esta boa memória dos teus actos.
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