A queda do muro, vista do desencanto
Realizou-se ontem na Praça de Touros do Campo Pequeno a cerimónia comemorativa da queda do muro, para onde foram mobilizadas largas fatias das massas populares, graças à colaboração do Clube Santa Aliança da Rua António Serpa, misturando os feijões verdes da antiga Legião com o piripiri vermelho dos antigos pioneiros. Cantou-se, então, emocionamente:
O meu chapéu tem 3 bicos
Tem três bicos o meu chapéu
Se não tivesse três bicos
O chapéu não era meu
Come a papa, Joana come a papa
Come a papa, Joana come a papa
Joana come a papa.
1, 2, 3
Uma colher de cada vez
4, 5, 6
Era uma história de reis
E outra colher de papa.
7, 8, 9
Ainda nada se resolve
10, 11, 12
À espera que a mosca pouse
E outra colher de papa
Ei-los obedientes, reverentes, dependentes, homens de uma só fileira sem porquê. Ei-los, os doutos adventícios, sempre seguidores do rolo compressor, quando os tempos que se avizinham trazem consigo as garras finas da vindicta. Ajoelhados, diante do falso altar, afiando as penas em pias de água benta, gorgulhando restos consagrados, vão, hipocritamente, genuflectindo em ódios e vinganças, com muitas benzeduras de colectivismos morais.
Não, não há direita nem esquerda, nem extremos, nem meio termo, há vencedores e vencidos e, quem vence, reparte o que ganha à custa do lombo de quem perde, nesse jogo de soma zero, onde a adição do mais um com o menos um a todos nos anula. Porque os donos do poder foram todos alunos do mesmo colégio do livro único, da mesma escola técnica de formação de esbirros, provinda dos sanbenitos.
Eis-me em solidão de revolta, sobre mim mesmo cerrado, sem conseguir conjugar a palavra esperança. Porque, nesses tempos vagos que se anunciam, a noite nem sequer nos pode dar espaço para um alento, porque tudo se atrasa e nos retarda e até as cordas da guitarra já não retesam. São as unhas do ódio que nos arreganham, onde os tambores feitos de nossa pele nos recordam que voltámos a ser escravos nas fileiras da ruína.
Já não sei dizer que novo dia nos traga a revolta, para que o vento possa semear sinais de liberdade. Preso na condenação estalinista, salazarenta, inquisitorial, sinto que me concedem viver desde que transporte a estrela do tolerado. Os pequenos ditadores das pequenas instituições continuam a amarfanhar o sonho, muitas gentes sem semente vão poluindo o prazer da criação, eles que não sabem o estampido de um filho que nasce, de uma árvore que se semeia, de um livro que nos sofre.
Senhores de garra adunca, gestores da vindicta, zés larés, mancos de mona, moncos de ventas, são omnipotentes de quintal fazendo macacadas em mukatas decepadas, corruptos, chéchés, muitos larés, enchendo de vento os falsos peitos das muchachas, fazendo brisa em cavernas de caveiras. Oh! donos da mentira, que tendes prazer nas diminuições de cabeça para os que não obedecem e recusam a unidimensionalidade de vossos arrotos.
Cópias de macacos predadores, oh! falsos fidalgos da doutoria bastarda, canalhas sem espinha, entre libações de geropiga, lampreia e água pé, sois os senhores, os novos donos desta gentalha sem sonho, desta multidão sem fé, ávida de nova procissão de vingadores, consagrados em pias de aguardente, para mascarem hóstias de rapé. Tudo gente de caduca compostura, almas de corsários, feitores de roças que já não há, cipaios de um qualquer "yes, minister" que sempre fez batota, massacrando a cubata e dando conferências perfumadas à imprensa da porcalhota.
Deitados na doce palha desta canalha, moendo nos vão matando e violando, tudo reduzindo à paz servil dos cemitérios dos falsos vivos.
Gente de ódios repetidos, gente que esgana, que se contrata, só porque teme gente que sonha e que recusa o chicote do sim senhor. O muro não caiu. Passou a vergonha no interior das sepulturas dos que se fingem vivos. Derrubemo-lo.
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