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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.12.04

Minha mátria, Natércia Freire



Morreu hoje a minha querida professora de poesia, Natércia Freire.

Leio o que me escreveu nos finais da década de oitenta e transcrevo:

Quando se lê um Poeta é compreendê-lo e vivê-lo, é receber o sagrado dom da sua mais funda combustão. Que mais se há-de esperar e desejar da sua mensagem! Que continue ardendo e escrevendo e escrevendo, como de si mesma dizia Tereza de Ávila.
O jovem poeta que me deu a triste nova, comentou em esperança, na mensagem de telemóvel: Natércia Freire partiu. Subiu as transparências, entrou em liberdade solta. Acabou de morrer.

Eu sei, Zé, somos todos seus filhos. E amando a mátria, ela estará sempre presente. Olhemos, sempre, o sol de frente.

                               


E convido-vos a reler Natércia:


Poema de um homem qualquer



E assim tenho passado. Apenas entre.
Desconhecido o tempo que é de morte
E o Mistério que fui Eu no seu ventre.

Entre o Dia dos outros e o meu Dia
Se levanta a agonia
E canta como um galo, ainda Noite,
Anunciador do Mal. Vidente e estridente.

De mim, o sonho ausente.
Dos outros, o clarim que me asfixia.

Mas é na terra de outro Continente
Que o aviso dispara a linha fria.

E a minha Pátria vem, impaciente,
Mascarada de Grécias, de distâncias
Remotas como Vénus. Renuncia
Ao Presente. O Presente se adia. . .

E sempre fica entre.

Nos dias imaculados



Nos dias imaculados
Em que ninguém bate à porta,
Naqueles dias lavados
Em que sou anjo e sou morta,

Em que da luz dos desertos
Partem chamadas e gritos,
E à flor dos olhos abertos
Se adormecem infinitos...

Tudo a escorrer frio e ordem,
Horas certas e contadas,
Sem que os soluços me acordem
Mesmo a dar-me chicotadas.

E me rasguem pele e calma,
E me atirem para o fundo
- O fundo da minha alma,
O fundo do Fim do Mundo.

E de rojo, como dantes,
Me larguem pelos caminhos.
E me esmaguem os Gigantes
E me intimidem os ninhos.

E ao curso ingénuo dos rios
Me entreguem como uma folha,
Bem ressequida... e bem morta!
P'ra que ninguém me recolha.

Mudas viagens eu faça
Nas águas que ninguém olha.