Minha mátria, Natércia Freire
Morreu hoje a minha querida professora de poesia, Natércia Freire.
Leio o que me escreveu nos finais da década de oitenta e transcrevo:
Quando se lê um Poeta é compreendê-lo e vivê-lo, é receber o sagrado dom da sua mais funda combustão. Que mais se há-de esperar e desejar da sua mensagem! Que continue ardendo e escrevendo e escrevendo, como de si mesma dizia Tereza de Ávila.O jovem poeta que me deu a triste nova, comentou em esperança, na mensagem de telemóvel: Natércia Freire partiu. Subiu as transparências, entrou em liberdade solta. Acabou de morrer.
Eu sei, Zé, somos todos seus filhos. E amando a mátria, ela estará sempre presente. Olhemos, sempre, o sol de frente.
E convido-vos a reler Natércia:
Poema de um homem qualquer
E assim tenho passado. Apenas entre.
Desconhecido o tempo que é de morte
E o Mistério que fui Eu no seu ventre.
Entre o Dia dos outros e o meu Dia
Se levanta a agonia
E canta como um galo, ainda Noite,
Anunciador do Mal. Vidente e estridente.
De mim, o sonho ausente.
Dos outros, o clarim que me asfixia.
Mas é na terra de outro Continente
Que o aviso dispara a linha fria.
E a minha Pátria vem, impaciente,
Mascarada de Grécias, de distâncias
Remotas como Vénus. Renuncia
Ao Presente. O Presente se adia. . .
E sempre fica entre.
Nos dias imaculados
Nos dias imaculados
Em que ninguém bate à porta,
Naqueles dias lavados
Em que sou anjo e sou morta,
Em que da luz dos desertos
Partem chamadas e gritos,
E à flor dos olhos abertos
Se adormecem infinitos...
Tudo a escorrer frio e ordem,
Horas certas e contadas,
Sem que os soluços me acordem
Mesmo a dar-me chicotadas.
E me rasguem pele e calma,
E me atirem para o fundo
- O fundo da minha alma,
O fundo do Fim do Mundo.
E de rojo, como dantes,
Me larguem pelos caminhos.
E me esmaguem os Gigantes
E me intimidem os ninhos.
E ao curso ingénuo dos rios
Me entreguem como uma folha,
Bem ressequida... e bem morta!
P'ra que ninguém me recolha.
Mudas viagens eu faça
Nas águas que ninguém olha.
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