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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.1.05

Que não se invoque a monarquia que se desconhece. Recebido de O.A.



A burguesia só existiu no Porto, sim senhor, como se afirmou no Tempoquepassa.

Por muitas razões esta afirmação é correcta e por mais esta que tentarei descrever sucintamente.

É que nesta cidade existia uma proximidade com uma certa ruralidade esplendorosa de tão nítida. Havia umas casas de uma outra burguesia aristocrata ou senhorial, que também só existiu no norte do país, e que se deslocava ao Porto para fazer contas com os políticos e, às vezes, permitir-lhes pernoitar nos solares e oferecer-lhes o manjar de uma galinha no forno de lenha de mítico sabor, ou, um célebre vinho do Porto arrancado no momento à pipa da adega. Frequentemente, estas encontros eram a única possibilidade de se obter um pagamento a prestações de impostos em atraso.

Era então o momento em que os novos ricos, também da política, preferiam fazer chantagem e esquecer os impostos, a troco de poderem passar a ser os portadores do anel de brasão que lhes era negado por não terem nascido na casta.



Os mais desesperados nobres, dirigiam-se a casas de penhores, onde deixavam o anel de brasão, e entregavam, com a dignidade possível, a cautela aos espoliadores, aos novos senhores do poder, fossem eles novos ricos políticos ou novos ricos de um estranho poder económico que ia florescendo pelas meandros de uma burguesia estranhamente indefinível, porque nela se mesclava já o poder que destruía a sua incita característica.

A passagem pelas oficiais casas de penhores era menos humilhante, do que o retirar do anel do dedo, e ver como ele se ajustava nos dedos gorduchos de quem o recebia como pagamento. Estes últimos eram, já então, os que comiam tudo e não deixavam nada: sobretudo, não deixavam por mãos alheias a humilhação que provocava o verbo ter, sobre muitos, que pelo verbo ser, tinham sido baptizados e desse facto se honravam por gerações e gerações.

Muitas vezes, quando se começava a badalar que um conde ou condessa já tinha vendido o anel da Casa a que pertencia, colocava-se um pano preto a tapar o brasão de pedra da casa senhorial, assumindo assim a venda, a necessidade de dinheiro, não obstante continuarem a dar trabalho nos campos aos mais pobres ou, tão só a saciar-lhes a fome quando não havia dinheiro para o pagamento da jorna.

Para além disto e de muito mais, nunca “os outros” souberam dos deliciosos amores das ditas meninas de sangue azul com alguns rurais de postura majestosa no carrego dos cestos da uva.



Nasciam assim os bastardos, filhos de coito danado e era tão danado este coito que nunca aprendeu a burguesia nascente, o quanto a proibição é um doce que se saboreia até às lágrimas eternas, até aos olhares cúmplices de tudo quanto é lindo de ver e viver.

Assim a Casa a que pertenci. A Casa que assistia lívida à ruína alheia. A Casa que ajudou muitas outras a suster a venda dos anéis de brasão, não apenas por representarem a Casa de cada um que os usava com o orgulho de transportar uma tradição familiar, mas antes porque era já uma luta desigual aquela a que se assistia; aquela que matava a dignidade do homem, recusando-lhe o direito e a honra do pagamento de dívidas pelo único modo de as extinguir: pagando-as na mesma moeda com que tinham sido contraídas.

Nem toda esta burguesia senhorial de que falo, seria honesta e impoluta. Contudo, basta-me saber de casos em que o dinheiro subverteu valores e razões de Ser, para aqui os denunciar.

Também se morre aos poucos. Também se morria devagar porque se matava depressa e ainda assim a resistência tinha lugar. Era doloroso. Era tragicamente belo.

Era o carrego de um género de pão embebido no joio. Eram as mãos, ainda assim limpas.

Que se não diga que o voto dos descendentes destas nobres gentes, irá para a urna dos que do ofício da falta de Ser, fizeram, e ainda fazem hoje, uma espécie de caminho de suposta vida.

Que se não invoque a monarquia que se desconhece no sangue encarnado de todos os nobres, que do respeito pelo real povo fizeram o seu alicerce de mundo.

O.A.