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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.2.05

Boatos, campanha negra e vitimizações

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Acabei de participar em mais uma "antena aberta" da RDP1, a convite da Paula Garin e da Eduarda Maio, desta feita sobre a chamada boataria na campanha. Insisti na circunstância do nosso traumatismo da bufaria intelectual ter origens remotas, de séculos de inquisição, assente nas denunciações de ouvida, sempre à espera da confissão como rainha das provas; da polícia política científica estabelecida por Pombal, continuada na viradeira por Pina Manique e requintada com Junot, donde nos veio o perigo de mandar alguém para o maneta, o oficial francês que a comandava; do formigueiro anti-congreganista e do seu irmão inimigo, efectivamente congreganista; do pidismo salazarento e dos delírios dos comités de vigilância revolucionária do PREC.

É mentira que o boato possa ser a arma do povo. O bom povo das aldeias que sempre soube das amantes e dos filhos do abade, não deixou de continuar a ir à missa e, sabendo quais os estilos homossexuais de actores como João Villaret, nem por isso o deixou de admirar. Mas era tudo antes do processo Casa Pia e da chegada da futebolítica. O bom povo sempre foi mais são do que os donos do poder social, marcados pela falsa moralidade vitoriana, onde muitos dizem que pensam como não vivem. E o bom povo vai dar, nas urnas, a resposta aos chamados manipuladores da opinião pública. O feitiço pode voltar-se contra o feiticieiro, mesmo quando este usa caixeiros viajantes da intriga e outros delegados de propaganda de actos não-médicos.

Já ninguém vive no tempo daqueles ministros da justiça que mandavam os jesuítas serem sujeitos a medições antropométricas para se provar a respectiva tendência inata para o crime e poucos estão disponíveis para aturarem o beatério congreganista, com muitos santinhos e benzeduras, esses que ainda recentemente distribuíram no santuário de Fátima folhetos contra os partidos que votaram contra a inclusão do nome de Deus na constituição europeia. Porque todos sabem que os fascistas já não comem criancinhas comunistas ao pequeno almoço e vice-versa, embora nenhum deva esquecer que a PIDE praticou a tortura e que Humberto Delgado foi assassinado, tal como houve tribunais revolucionários comunistas que executaram pretensos traidores, que Hitler determinou o holocausto e que Estaline é o responsável pelos Gulags e pelos massacres de Katyn.

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Em Portugal é particularmente sensível este atavismo. Que também gerou uma especial propensão para que ainda hoje se mantenham sociedades secretas e discretas, bem como uma tendência para a teoria da conspiração, com o consequente delírio de certa literatura de justificação, propensa para o revisionismo histórico, nomeadamente através de certo memorialismo.

Fiz a distinção entre a chamada má-língua do boato popularucho, emitido no lavadouro, no fantanário, na taberna ou no café, e a emissão de insinuações a partir da sociedade da Corte, agora dita gente fina, "jet set", por onde pensam circular as pretensas elites que assistem à quinta das celebridades, elegem José Castelo Branco ou assistem, comovidas, aos programas sobre prostitutos e prostitutas nos horários nobres das televisões dos grandes educadores e viscondes, à procura de share para os anúncios.

Referi, neste último âmbito, o papel histórico desempenhado por Marcelo Rebelo de Sousa na "Gente" do "Expresso" e na "Meia Desfeita" do "Semanário" que criou um estilo que foi revisto e acrescentado por Paulo Portas no "Independente". E esqueci-me de acrescentar como a culpa por cá morre solteira e como o "crime" pode compensar.

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Recordei os ataques à vida privada de Sá Carneiro assumidos publicamente por Mário Soares e pelo Arcebispo de Braga e que as insinuações feitas sobre a vida privada de Sócrates foram aceleradas pela luta política interna dentro do próprio Partido Socialista, antes de mandrem a notícia para um jornal brasileiro e aqui a difundirem por "mail". Referi o que a PIDE mandou dizer do "bochechas" que este tanto pisara bandeiras nacionais como tinha hábitos sexuais como ele nunca teve, para não falarmos das consultas de Vasco Gonçalves no Júlio de Matos, na matança da Páscoa ou nas dívidas de Sá Carneiro à banca.

Salientei que hoje há novos meios de difusão dos boatos ou, como outrora se dizia, novos métodos para a "agit-prop" e novas técnicas de "psico" e de contra-informação, actualizadas por antigos especialistas em guerrilha e anti-guerrilha, alguns dos quais donos de maiorias absolutas. Daí que a blogosfera e os comentários "on line" dos grandes meios de comunicação presentes na Internet sejam bem mais eficazes do que a técnica da anedota política durante o salazarismo.

Recordei que temos alguns jornais de escândalos e um deles até é pertença da Lusomundo, sendo assim indirectamente influenciado pelo governo. Aliás, o dito cujo, ao lado do semanário "O Crime", acolheram muitas insinuações antes de Santana Lopes emitir a célebre teoria do colo.

Assinalei que o objecto do boato já não é apenas a eventual sexualidade de líderes do PS e do PP, dado que directa, ou indirectamente, tal matéria foi referida por "sites" de defesa do próprio "lobby gay".

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É lamentável que muitos gastem tinta e teclas a insinuar com quem dorme quem, assim se demonstrando como seria útil que o Doutor Freud pusesse certa classe política na marquesa do psicanalista, desta forma se confirmando como muitos problemas politiqueiros são problemas sexuais mal resolvidos. Sabermos quem foram o(a)s amantes ou os actos de adultério de certos protagonistas políticos é uma questão de porcaria.

Até há pouco havia uma significativa diferença entre o modelo anglo-americano de tratamento puritano dos valores e da vida privada dos políticos face aos nossos hábitos de alguma hipocrisia social, dado que, aqui, nenhum líder político, dos conservadores aos progressistas, tinha que assumir publicamente a respectiva opção de vida sexual, da mesma maneira como o ministro Morais Sarmento teve a coragem de divulgar publicamente o respectivo passado de consumidor de drogas proibidas. Ficávamos pelo manifesto de Carlos Candal e tínhamos entrado no ritmo de outras subtis insinuações, como a invocação de gerar vida, assumida por Francisco Louçã contra Portas, quando este tentava dizer que a condenação do aborto significava a defesa do direito à vida. O que até estraga a paisagem porque certas brejeirices dá um certo sal de ironia ao debate político, desde que não passem as marcas da ofensa pessoal.

Mas os boatos vão além da sexualidade. Podem também incidir sobre actos de corrupção, sobre a suspeita quanto aos sinais exteriores de riqueza de certos políticos, etc. Curiosamente, ninguém parece indignar-se quando um qualificado politólogo, com muitas pretensões científicas, qualifica os respectivos adversários como de extrema-direita, porque se o mesmo for galardoado como convidado para comentador de um jornal de grande circulação ou para falador num programa televisivo de grande audiência entra na zona da impunidade.

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Aliás, as conversas sobre estas teorias da conspiração ou sobre a pertença de um concorrente a esta ou aquela sociedade secreta, ou discreta, acontecem ainda hoje nos gabinetes alcatifados do governo, do parlamento, da banca e das universidades. Até já vi um catedrático, em pleno horário nobre da televisão, dizer que tinha acabado de falecer uma pessoa como quem eu estava ao telefone.

Até há pouco, ainda havia alguns tácitos pactos de bom comportamento e assumidas regras do jogo emitidas pela auto-regulação entre os principais combatentes políticos do jogo democrático. Mas os limites foram definitivamente varados por certa gente do neo-maquiavelismo que, invocando a Razão de Partido, quer lavar as mãos como Pilatos, praticando o próprio assassinato moral. Certos figurões até insinuam, junto de altas esferas, as mais ignóbeis adejectivações. Junto de católicos, podem acusar-nos de maçons; junto de laicistas, de "opus dei"; junto de esquerdistas, de miguelistas; juntos de direitistas, de esquisitas origens esquerdistas, só para manetrem incólume o respectivo vira-casaquismo.