Da alma portuguesa à identidade de um povo
Sua Excelência Reverendíssima, o Senhor D. Januário dos Reis Torgal, especialista em questões de almas e alminhas, e que também costuma disputar, em ritmo de "soundbites", o espaço mediático, tem o direito de fazer todos os aproveitamentos político-eclesiásticos do tempo de antena que lhe é concedido pelos preconceitos de esquerda e pelos fantasmas de direita de certa comunicação social portuguesa, disputando, a Santana e Portas, o conceito de instrumentalização que os três fizeram do aproveitamento da morte da irmã Lúcia. Assumindo-se no exacto inverso do padre Lereno, a reverendíssima figura, decidiu pisar os terrenos do nacionalismo místico republicano, que, aliás, nunca foi muito católico, e considerou que "a irmã Lúcia não faz parte da alma da pátria", embora logo tenha acrescentado que "dentro da identidade de um povo é realmente uma figura".
O Senhor D. Januário sabe, com muita certeza antropológica, que um povo é "uma comunidade de significações partilhadas", para citarmos Karl Deutsch, quando este define o que é "a identidade de um povo", coisa que, em republicanês de metáfora, à António José de Almeida, quer dizer, precisamente, "alma nacional" ou "alma portuguesa". Logo, não é heresia podermos dizer que o ser português passa por termos símbolos comuns, como o foram Eusébio e Amália Rodrigues, e como é, inevitavelmente, a irmã Lúcia, enquanto cabeça dos três pastorinhos. É uma evidência plebiscitada por milhões de portugueses. E tal não se identifica, naturalmente, com os símbolos nacionais, constitucionalmente consagrados, onde, muito religiosamente, estão as chagas de Cristo e a armilar do cosmopolitismo maçónico, nesse sincrético que unifica os dois humanismos irmãos-inimigos que nos dão ideia de Portugal.
Posso não gostar de Fado, de Futebol ou de Fátima, mas o pantera negra, o "povo que lavas no rio" e o "a treze de Maio, na Cova de Iria" são marcas inapagáveis do nosso modo de estar no mundo.
O Senhor D. Januário, no seu silogismo comunicativo, disse e não disse, desdizendo e dizendo tal axioma. Os símbolos são tão reais quanto os calhaus. E o "chão moral da história" é tão sustentador quanto o "chão físico". São heranças, não os escolhemos. Por mais que o Bloco de Esquerda tente elevar outra freira, como a respeitabilíssima Engenheira Maria de Lurdes Pintasilgo, à categoria da freira carmelita, ontem falecida, não consta que tal tenha sido assumido pelos vários papas, pelo que a comparação até ofende a memória dessa militante do "Graal" e antiga Primeira-Ministra de Portugal, sempre fielmente católica. Contra factos, não há argumentos.
Quando alguns eclesiásticos se põem de pé atrás ou em bicos dos pés, importa recordar-lhes que muitas pretensas rebeldias já há muito que entraram para a categoria dos situacionismos. Com efeito, o cúmulo do "politicamente correcto" está precisamente em muitos que, pensando que são "politicamente incorrectos", mais não são do que repetitivos rotineiros, fabricados pelo "agenda setting" e pelos livros de estilo da nossa Corte comunicacional. Transformados em "paradigmas" da tal irreverência plastificada, repetem "ad nauseam" os mesmos tiques e as mesmíssimas palavras, talvez acreditando que têm o poder de nomeação, isto é, que, através de discursos, podem gerar as coisas nomeadas. Amen!
Veja-se a nota, hoje publicada no Diário de Notícias, que diz ter ouvido especialistas em ciências e marketing político a propósito da morte da irmã Lúcia, que levou o PSD e o CDS/PP a suspenderem a campanha por dois dias, enquanto o PS optou por cancelar apenas as acções festivas. Unânime é o reconhecimento de que Lúcia é uma figura eminente da Igreja Católica merecedora do respeito de todos, mas também há sintonia quanto ao aproveitamento político desta situação - que, aliás, já foi denunciado pela Igreja (ver texto ao lado) - e que duvidam se traduza em grandes proveitos eleitorais.
Suspender a totalidade das acções de campanha pode ter "um efeito de congelamento da dinâmica de vitória", refere Edson Athaíde. Para quem o PSD só beneficia com uma menor exposição, já que "é evidente a rejeição" do líder. No mesmo sentido se pronuncia José Adelino Maltez.
O docente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas entende que esta paragem acaba por ser útil tanto ao líder do PSD como ao do CDS. A Santana Lopes porque estava numa fase "muito dura" da campanha e precisava de parar para "mudar de tom"; a Paulo Portas porque nesta última semana se desenhavam mais combates com o seu parceiro de Governo.
O mesmo não tem quaisquer dúvidas de que há intenção de retirar dividendos políticos por parte de Santana Lopes e de Paulo Portas, "dois líderes que vivem em populismo e demagogia". Mas também acredita que o resultado é praticamente nulo por defender que o eleitorado sabe separar o trigo do joio. "Se a democracia portuguesa tem algo de novo, é a separação clara da religião e da política", diz. Lembrando, aliás, que, por esta mesma razão, não foi possível constituir um partido democrata-cristão com o patrocínio assumido da Igreja. Características que o CDS não reúne, sublinha.
O professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas alerta que o aproveitamento político deste acontecimento "é extremamente perigoso e pode ser um tiro que sai pela culatra". Tanto mais que "o fenómeno de Fátima é demasiado complexo para ser lido de uma forma simplista".
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