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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.3.05

Os dezasseis do décimo sétimo, depois de seis provisórios




Nesta sexta à noitinha, o vento mudou e o governo chegou. Será que a confiança voltou? Os comentadores são quase todos unânimes no aplauso, anunciando o "estado de graça" deste governo que quase se assume como do extremo-centro, entre liberais nas pastas económicas e socialistas nos assuntos sociais e nas obras públicas. Há dois ou três antigos comunistas, alguns antigos democratas-cristãos, do CDS ao PDC, num governo presidido por um antigo JSD que conseguiu mobilizar para os estrangeiros um antigo candidato adversário do "povo de esquerda" e que o chefe do patronato se apressou a qualificar como "a nódoa negra" ou a "maçã pôdre" deste governo. Apenas diremos que este é o governo que o PSD gostaria de ter tido, como o comprovam elogios de Martins da Cruz, Mira Amaral, Eduardo Catroga e as críticas do PCP e do Bloco de Esquerda. Por outras palavras, Sócrates faz o Bloco Central sem recorrer ao irmão-inimigo em cujo seio foi gerado. Até a discussão em torno na influência bancária no seio do processo se assemelha, embora seja preocupante a questão.



Por nós, apenas podemos observar que Diogo Freitas do Amaral quase faz o pleno da democracia portuguesa. Aquele que chegou a ser convidado para ministro por Marcelo Caetano, começou, depois de Abril, como "rigorosamente ao centro", mas acabou por ser o líder mais à direita do parlamento admitido pelo MFA, para, depois de aliar episodicamente ao governo PS, ser o número dois da Aliança Democrática, antes de se assumir como candidato presidencial do cavaquismo contra o soarismo, para regressar à liderança equidistante do CDS, antes de se desfiliar deste partido e de apoiar publicamente o PSD de Durão Barroso, que lhe deu acesso a presidente da Assembleia-Geral da ONU. Compreende-se a irritação do patronato e que Luís Delgado diga que a aposta que Sócrates nele fez "não é um erro de casting. Não deve é estar neste filme", por ter atacado os nossos dois aliados históricos, os britânicos e os norte-americanos, com quem teria "relações mentais difíceis".

Nós, que nunca simpatizámos com Freitas, nem nunca o seguismo, partidária ou espiritualmente, apenas diremos que este ataque de Delgado deve ser entendido como um elogio para quem tem o dever de defesa da independência nacional e deve manter um mínimo de orgulho que não nos reduza ao seguidismo dos meros bons alunos, em pedinchice. Notamos, com alguma ironia, como o mais novo dos senadores os foi capaz de instrumentalizar a todos, passando uma adequada rasteira a quem sempre o detestou cordialmente e o transformou em dilecto inimigo, dado tê-lo vencido na ascensão ao Olimpo onusiano e, agora, no comando das relações externas e no inevitável eleogio do velho Soares. Aliás, o tal senador adversário de Freitas, para além de se ter que despedir de Maria João Bustorf e dos prometidos subsídios a instituições de feudalizada personalização do poder, fica, agora, com os seus suplementos remuneratórios, e capacidade de nomeação dos jagunços e fiéis, na total dependência de um ministro das universidades, com quem sempre teve cordiais relações em matéria de ocupações palacianas, ao mesmo tempo que ainda tem que curar a azia de certos almoços no Grémio Literário, por causa das universidades castrenses.



Curiosamente, Freitas continua a respectiva tradição de ultrapassar o PSD pela esquerda, numa postura mental bem próxima da assumida por Romano Prodi, aproveitando as janelas de oportunidades que lhe permitem baralhar e dar de novo. Se António Costa, passou a ser a charneira do executivo, com a possibilidade de limpeza das eventuais cabalas e caviares, com o apoio de Jorge Lacão, deles se espera que finalmente irradie uma nova cultura de Estado de Direito, para que outro Costa, o Alberto, vença aquela timidez que a inteligência e o sentido de responsabilidade do respectivo espírito geométrico têm impedido que nos deslumbre com actos de imaginação reformista e de certa audácia, necessárias para que se ultrapasse a barganha dos neo-corporativismos.



Esperemos que na Defesa regresse o espírito consensual dos auditores, eliminando-se o espírito de persiganga que aí se instalou, e se retome a senda de um atlantismo lusíada, tanto a norte como a sul, sem que se invista numa futura bolsa de estudo em terras do Tio Sam. Notamos como, afinal, não entraram no gabinete dois falados professores de Georgetown e um antigo administrador do Iraque, para gáudio de Ana Gomes e de todos quantos não gostam da interferência dos que nos colocam a nível do Terceiro Mundo.



Quanto aos ministros da área económico-financeira, esperemos que os mesmos se deixem politizar. Não gostaríamos que regressasse o atavismo da mercearia financeira, oriundo do salazarismo e propagado pelo cavaquismo e pelo manuelismo, esse estado de espírito que confunde a necessidade de disciplina com a transformação dos restantes ministros em meros secretários de Estado. Julgamos que, contudo, está em causa a desconfiança de muitas elites portuguesas face à confusão entre o poder bancário e o poder do Estado, com discussões sobre a influência do BES, do BCP e de figuras como Dias Loureiro ou Ângelo Correia, num modelo que se quer impor sacrifícios aos contribuintes tem que primar pela transparência. Apenas sugerimos que se cumpra o alerta emitido por Freitas do Amaral sobre as más práticas de "outsourcing" e que se acabem com as más engenharias financeiras da parecerística e do recurso a multinacionais de direito para consultadoria em matérias de soberania. E que não se esqueçam da necessidade de recriação de uma resistência agrocrática, como parece ser prometido por Jaime Silva, um sucessor à altura técnica de Gomes da Silva e de Sevinate Pinto, mas que não pode cometer o erro de ser um excelente tecnocrata que, por inexperiência governamental, se torna num mero anão político.



No social, Vieira da Silva tem a ingrata tarefa de não deixar falir o "Welfare State" e continuará a adiar a imprescindível passagem para modelos como os neo-zelandeses, enquanto Correia de Campos tem que nos demonstrar como é capaz de distinguir o público do privado e o sentido de Estado da atracção negocista.Já nas áreas educativas e da cultura, julgamos que as duas mulheres podem ser surpresas positivas se se voltarem para o futuro, mudando as regras do jogo, onde uma tem que pensar em ter como aliados os que têm como sentido de vida a missão professoral e a criação.

Se este não é o meu governo, esperemos que seja um bom governo para Portugal. Que cumpra a missão exigida aos Blocos Centrais para que se extinga de vez a tentação do Bloco Central. E que que fuja, como diabo, da cruz, e mafoma, do toucinho, desse feitiço do império dos interesses. Um solidariedade bem cúmplice para os meus antigos alunos e para os colegas que ascenderam à categoria do "servus ministerialis"! E uma imensa alegria: com este governo acabaram os frustrados profissionais, porque a grossa maioria deram provas de serem os melhores na respectiva profissão, nomeadamente na carreira académica, onde quase todos merecem os lugares de topo que ocupam no "cursus honorum". Já estávamos fartos dos alunos sofríveis, dos que optaram pela política por falharem nas outras vias profissionais. Agora há inteligências práticas indiscutíveis e muito sentido de honra. Sirvam o bem comum e mudem a página de decadência que há muito vinha sujar a nossa história. Que bom poder ser oposição de quem o merece!