É preciso dizer que o rei vai nu
Para grande parte da intelectualidade ainda vigente, nesta pátria que vive no estreito espaço que vai de salazar a portas, o nome esquerda ainda é uma espécie de indulgência plenária que lhe parece garantir o acesso ao colectivismo moral do bem, do caminho e da verdade, com justiça, liberdade, fraternidade e amanhãs que cantam, enquanto a direita é sinónimo de besta do apocalipse, coisa de burrinhos, safados, capitalistas de faca na liga, primos de antigos dirigentes da Liga dos Antigos Graduados da Mocidade Portuguesa, sobrinhos de ministros do "Ancien Régime" e bastardos de caseiros de marqueses, onde os únicos escrevinhadores que valem a pena são os que fazem rapapé aos papas da crítica, ou que recebem elogio de um desses grãos de mestre do sindicato dos elogios mútuos.
Por mim, confesso, aprendi meia dúzia de princípios que tento continuar a praticar na minha profissão. Aprendi a rejeitar a existência, no seio da universidade, de candidatos ao inexistente cargo de reitor-primaz, com muita canónica e bispal postura, mas nomeados por decreto governamental, da mesma maneira como dantes se decretinavam para a função capitães vindos da partidocracia. Aprendi a defender a não confusão entre o ensino público e o ensino que visa o lucro, não tanto por causa das acumulações e dos conflitos de interesses, mas fundamentalmente por causa do sentido de missão. Aprendi a rejeitar a subreptícia interferência confessional no crescimento dos privilégios e das isenções do ensino concordatário, como tem sido fomentada por aqueles que lhes pedem o favor de um emprego ou de uma unção. Logo, não posso mudar de política se mudar o ministro do culto, ou se ascender a supremo ministro o ilustre oposicionista do sistema que gostava de dizer que valia a pena a coragem de estar em minoria.
Detesto esse rigoroso controlo salazarento de certas senhorias que, muito estalinisticamente, registam as palavras escritas dos respectivos despachos, chapas, artigos, conferências e demais declarações, incluindo entrevistas com jornalistas avençados ou a quem se deu emprego. Reconheço as qualidades de quem tem o cauto e vérmico auto-controlo cerebralista, mas é compreensível que a erosão do tempo lhes faça saltar a tampa noutros segmentos do quotidiano, revelando-se a visceral verdade que lhes dá a tal força da vingança que, desde sempre, os moveu. Por isso, ei-los que, quando sentados no coiro dos respectivos sofás, entre os cortinados da pose e a contraluz donde fulminam sedutoramente o convidado, emitem as respectivas argumentações, feitas de restos de articulados forenses e de doces conezias, mas descendo aos recantos ardilosos da infâmia, para fulminarem os desobedientes.
Há muitos que, herdeiros dos velhos métodos do capaz das quintarolas, não reparam que, apesar de se conservarem cerebralmente intactos nas requintadas volutas, podem comprometer a excelsa intelectualice quando a diluem nos meandros administrativistas do supremo equilibrismo político-mediático, político-partidocrático ou político-universitário. Sobretudo, quando se enredam na persiganga, na vindicta e no saneamento, regressando aos tempos áureos da directorice autocrática da impunidade.
Pensando que mantêm a suprema ambição, perdem o sentido das proporções e o nível do voluntarismo, deixando que maus olhos e péssimos ouvidos alheios se transformem nas cordas que os ligam à realidade. Quando o veneno da intriga fomenta os resíduos inquisitoriais e não os deixa reparar que já não vivemos no tempo em que era lei o que o príncipe dizia e que o mesmo estava dispensado da própria lei que podia editar, é Portugal que padece. O modelo decretino desse hipócrita legalismo, em que tais seres vérmicos ascenderam ao olimpo da impunidade, apenas fomenta a criação de núcleos de fidelismo feudal e de muitos tumores por extirpar.
Julgo escapar às tenazes desses colectivismos da citação mútua, onde o acotovelar de elogios mútuos e a reprodução das excelências pela clonização dos papagaios doutorais, no circuito fechado de certos claustros, com concursos públicos feitos com fotografia, deviam obrigar-nos a rejeitar este modelo decadentista. Nesta sociedade da imagem e da sacanagem, o próprio doutorismo universitário já caiu no logro dos cinco minutos de fama telejornalísticos. Basta que continue este regime dos poderios, onde há pretensos universitários que têm fama por serem, ou por terem sido políticos, tal como há partidocratas que têm fama por terem usurpado títulos universitários, mesmo sem ferirem o legalismo. Quando os carimbos universitários de muitos professores da mala ruça se reduzirem aos cartões de visita e às fatiotas para uso nas procissões da vaidade, não tardará que também nestes domínios entre em vigor o regime da quinta das celebridades.
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