a Sobre o tempo que passa: Mais excertos dos meus diários abrileiros, com cenas eventualmente chocantes, mas sem bolinha no canto direito de quem vê

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.4.05

Mais excertos dos meus diários abrileiros, com cenas eventualmente chocantes, mas sem bolinha no canto direito de quem vê



Costa Gomes anda mal. Sente-se acunhalado pelas costas. Tem soares frios. E de noite só vê carneiros. O 26 de Abril foi ele. Tal como havia sido o 24.

Hortense teve um deslize na vida, quando o namorado lá na terra, depois de a enganar, a largou. Veio para a cidade e entrou na vida, com um filho nos braços. Empregada de mesa numa cervejaria do Terreiro da Erva, apareceu-lhe o Chico e recordou-lhe a vida que podia ter tido. Amando nele essa vida que não viria a ter, chegou a confundi-lo com o amor. Ficou "só dele, só dele. De borla". Até o ajudava de vez em quando. Certo dia a Hortense deu uma facada no Chico. Foi hoje julgada. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Nem o nome é ficcionado. É por causa dela que eu vou votar pela descriminalização da IVG.

Vasco Gonçalves sofre o ataque de um excremento de passarinho. Leva a mão à cabeça e diz: "Lá tive eu um derrame cerebral". Dizem também que, noutro dia, levou um tiro nos miolos, mas nada sofreu. Não havia lá nada. Depois, chegou a comprar um burro. "É que duas cabeças pensam melhor do que uma".

A clandestinidade é um bairro que toda a gente sabe onde existe, mas ninguém sabe onde é. Um semanário entrevistou Alpoim Calvão na clandestinidade. Uma rádio entrevistou o capitão que, depois de roubar mil metralhadoras, permitiu que Otelo dissesse que as armas estavam em boas mãos. A clandestinidade é uma coisa onde a extrema-direita está e o PC esteve. Em Portugal, a clandestinidade promove manifestações públicas.



28 de Setembro. O MRPP diz que se tratou de "um golpe fascista seguido de um contra-golpe social-fascista". Vasco Gonçalves refere que foi "o maior ataque em forma da reacção".

O Almirante Rosa Coutinho faz um discurso aos trabalhadores da CUF, no Barreiro, e proclama: "ser-se revolucionário de acordo com as maiorias é um contra-senso". E mais refere: "Hitler e Mussolini quando subiram ao poder diziam que eram socialistas". Conclui: "um revolucionário pode ter que estar durante muito tempo com as minorias esclarecidas".

Todas as ideologias políticas ditas científicas me repugnam. Cientificamente falando o que é verdade hoje pode amanhã apenas ser parcela de verdade. Quem construir uma ideologia assente em tais verdades arrisca-se a ver o grandioso edifício a perder-se nas areias movediças do tempo. Assim, o marxismo, essa pirâmide com vértice para baixo.



Qual é a tua mão esquerda? Ele mostra mesmo a mão esquerda. O interrogador responde: Não, essa é a extrema esquerda!

Beto nos tempos do liceu e nos primeiros anos da universidade era um dos raros intelectuais fascistas puros que eu conheci. Talvez por ter horror às brutalidades virilizantes dos colegas, sublimava-o em violência ideológica. Tinha no seu quarto um distinto retrato de Adolf Hitler e entretinha-se em delirar planos para o extermínio dos judeus que ainda restavam. "Cá por mim, metia-os a todos num paquete velho da Companhia Colonial de Navegação, a pretexto de um cruzeiro a Angola e no meio do oceano, zás ... afundávams capitalistas e semitas". Era também um furioso adepto da geneticização: "esterilizavam-se os doentes e os diminuídos mentais". Foi para Lisboa estudar o que ainda não havia em Coimbra e assumiu a homossexualidade, ao mesmo tempo que despertou intelectualmente no "underground". Depois do 25 de Abril passou rapidamente do sector intelectual do PCP para o PS. Agora fala de cátedra, continuando o elitismo dos filhos da grande burguesia. E fala no povo e para o povo. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Só nome é ficcionado. Continua a ser meu amigo.



A direita é sempre o inferno dos outros. Para o PPD, a direita é o CDS. Para o CDS a direita eram os partidos proibidos depois do 28 de Setembro de 1974.

Manuel Joaquim nasceu numa aldeia da raia, filho de um guarda republicano. Começou por estudar engenharia, mas não concluiu a licenciatura. Só depois de chegar a Coimbra descobriu a cultura que não vinha nos compêndios. Entusiasma-se e lê devorando. Transforma-se num intelectual revolucionário, neofascista. Conhece uma miúda, filha de um velho militar antifascista, casa-se, vai para Lisboa e começa a conhecer vários intelectuais do círculo do sogro. E publica poesias no "Diário de Lisboa". Encontrei-o anteontem. Já é pai. Fala entusiasticamente do neo-realismo, do estruturalismo. Considera Eduardo Prado Coelho um grande intelectual e cita Althusser. Diz mal dos intelectuais que ainda há dois anos fanatizava. Agora é marxista-leninista, mas independente. Gostava do MES antes da cisão, mas votou PCP. É simpatizante do partido de Cunhal, mas não quer inscrever-se. Põe algumas reservas. Nacional-revolucionário, virilão, era legionário e gostava de Karate. Agora diz que é intelectual e fala, por tudo e por nada, em classe dominante. Embora sem declarar-se estalinista, diz compreender os cento e tal milhões de mortos. "Tinha de ser, eu acredito na ditadura do proletariado". Ei-lo comunista, sem ser fanático. Até gosta de discutir. Continua a ser amigo do amigo. Compreendo-o. Leu em maratona e só depois se converteu à cultura. Ficou atordoado e teve medo da liberdade. Teve de agarrar-se a um sistema que o não fizesse perder. Encontrou o sistema. Detestava os comunistas porque pensava que eles eram materialistas, mas, ao ler os manuscritos de Marx, diz: "encontrei aí muita poesia". Compreendo o Manuel Joaquim. Aceito-o. Não sou capaz de hostilizar uma pessoa depois de a ter compreendido. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Só nome é ficcionado. Continua a ser meu amigo.

Luanda, nome de guerra. A guerra alstra em Angola. A guerra do ódio para matar antes que me matem. Em Luanda não há tempo para se enterrarem os cadávares. Violações, torturas, perseguições, incêncdios, rapinas, ultrajes. Os regressados falam de crianças que vagueiam pela cidade, chorando os pais mortos. De filhas violadas em frente dos pais e dos irmãos. De cadávares esquartejados. Da peste, da fome, do sangue.



O Visconde. Veio do Porto onde frequentou um desses colégios de meninos bem. Instalado em Coimbra, no primeiro ano de direito, começou por frequentar o Tiro e Sport da Cruz de Celas à noite, o Nicola ao fim da manhã e o Avenida para a bica da tarde. Vi-o chegar entusiasticamente adepto da suástica. Vi-o passar, pouco tempo depois, a católico progressista, escrevendo artigos sobre o atentado aos direitos do home na revista do CADC. Não tarda que chegue ao socialismo e que comece a descobrir Karl Marx. Depressa passa a atacar os revisionistas e adere ao maoísmo, à droga e ao amor livre. Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. Só nome é ficcionado. Nunca mais falei com ele. Reparo que, já moderado, é um alto hierarca do regime. Na ala esquerda. Não é como aquele ilustre ministro da direita que, nos tempos de Coimbra, andava pela FEC-ML, mas que ninguém diz, porque só falam no Durão.

O jornal "Expresso" traz uma entrevista com Franco Charais, destacado militar do Grupo dos Nove. Diz que é socialista, definindo o modelo como aquele sistema em que acabou a exploração do homem pelo homem, e considerando que tudo o que seja caminhar para estabelecer uma justiça social é caminhar na via para o socialismo, pelo que é preciso criar igualdade de oportunidades. Porque as desigualdades começam logo à nascença.
Por outras palavras, Charais considera o socialismo como a luta do bem contra o mal. Infelizmente parece não ter descoberto o ovo de Colombo da polítiva.

Sá Carneiro, em entrevista à BBC, proclama: em política não há decisões definitivas senão quanto aos princípios. O mesmo político, em palavras recolhidas pelo "Jornal de Notícias" observa que "Portugal é um país em que o mundo rural predomina largamente sobre o mundo urbano, que praticamente se reduz a dois ou três pontos".

Todos partidos portugueses, a partir do CDS, inclusive, invocam o socialismo. Não dizem qual. Se aquele que há, se aquele que ainda não houve e talvez nunca venha a haver. O CDS quer atingi-lo através da economia social de mercado. O PPD através da social-democracia. O PS através do socialismo democrático. O PCP pela ditadura do proletariado.

O Costa Gomes é do PRP-BR. Porque é Presidente da República Portuguesa- Bastante Rouco.

Saiu uma nova sopa da Knorr. É a sopa MFA: sopa de nabo com muitas estrelinhas.