O meu 25 de Abril, em textos coevos e ainda coimbrinhas, muito pouco cravotípicos, a trinta e um do dito
Dar um depoimento sobre o 25 de Abril em sessenta segundos, só através de uma caricatura. Digamos que nesse dia de 1974 nos vimos livres de um regime que havia sido montado por um avô autoritário, ao estilo do pai tirano, e que chegou o tempo da geração do pai modernaço e "bon vivant", muito viajado, que não tinha problemas de abrir as janelas, porque resistia às correntes de ar.
A certa altura, no fim da década de oitenta, os membros da família, fartos dos laxismos desse pai modernaço que não gostava de ler "dossiers" e que até meteu a ideologia na gaveta, pediram ajuda a um tio austero, que nunca tinha dúvidas e raramente se enganava. E foi ele que tratou de pôr ordem no orçamento, pintou a casa e arranjou os caminhos e as cêrcas do quintal. Depois, tanto o pai Mário como o tio Aníbal saíram da coabitação, dando lugar ao primo António que logo mostrou o que valia, abrindo a gestão ao Durão, ao Portas, ao Santana e ao Sócrates.
Por outras palavras, como dizia Ortega y Gasset, todas as revoluções são pós-revolucionárias. Medem-se menos pelas intenções dos primitivos revolucionários e mais pelas acções dos homens concretos que fazem a história, sem saberem que história vão fazendo. Porque, na prática, a teoria é outra...
Daí que comemore o dia com pequenos textos recolhidos de meus diários, concluindo com parte de um artigo que publiquei no "Povo Livre", em 1976.
Em 25 de Abril de 1974, a minha mãe acordou-me às dez horas a dar-me a notícia do golpe de Estado. Fiquei toda a manhã a ouvir os comunicados que a rádio ia transmitindo. De tarde, tive exame de Medicina Legal, comprei "A Capital" na Portagem e fiquei toda a noite a ouvir rádio e a ver televisão. Só dei um pulo de contente, quando ouvi o nome do General Spínola. Afinal aquilo podia ser o meu golpe de Estado.
Nesse dia nasceram duas rolas na gaiola do quintal. Depenadas, com escamas nos olhos. Fiquei contente e apeteceu-me assobiar. Afinal, a vida continuava.
Queria as palavras mais belas, as palavras singelas, não ter medo de estar aqui, não ter medo desse bacanal de ódio que nas ruas vai grassando. Tenho as mãos livres, não me apetece demagogia, não me apetece cantar ódio em cada esquina.
Tenho a terra do meu país agarrada às botas e apetecia a palavra liberdade, quando o povo ingénuo começava a falar pelo morse da revolta. Andavam bandeiras vermelhas na cidade e lobos esfaimados mostravam as garras do ódio. Nessa multidão do comício não assentava o meu sonho. Porque na praça pública havia dísticos de loucura. Ídolos com pés de barro que iam barafustando, não reparando que os berros podiam ser servos.
Talvez a hora não fosse para meditação. Talvez tudo passasse, como nuvem repentina, e acabasse por vencer a calma dos poentes.
O vinte e cinco de Abril foi a tão esperada pedrada no charco do nosso letargo, o tal indisciplinador de que falava o poeta. Poucas vezes terá acontecido na história deste país uma tal explosão de emoções e uma tal mobilização de vontades, que criaram condições para que a tal libertação da mola desoprimida que se partiu se transformasse numa autêntica revolução libertadora, pois raras vezes os ideais de pão, paz, justiça e liberdade terão sido, ao mesmo tempo, de tantos.
Mas a ilusão não duraria muito tempo. Nos subterrâneos do processo, começava a gerar-se uma aliança "contra natura" entre certos militares, que haviam sido libertadores, e alguns intelectuais ditos "unitários", aliança essa que pretendia fazer uma leitura totalitária de um programa que se asumia como de salvação nacional.
E o espírito do vinte e cinco de Abril a que quase todos tinham aderido, foi sendo progressivamente usurpado pelo oligopólio dos que não queriam, ou não sabiam, entender a palavra liberdade.
"Ser-se revolucionário de acordo com as maiorias é um contra senso", afirmou certo dia um tal marinheiro que havia sido alto-comissário (não) de Portugal em Angola. Era o estado de espírito de todos os pretensos libertadores que pretendiam alcançar o poder através da "insurreição a partir do aparelho de Estado".
Traduzindo em calão todos quantos modelos de revolução haviam sido inventados desde os tempos de Lenine, os nossos surrealistas revolucionários não se entendiam quanto ao modelo mais adequado. Tivemos, assim, desde os mais estalinistas dos leninistas, aos maoístas ultravermelhos, com passagem pelos titistas, guevaristas, trotskistas, castristas, oportunistas, vigaristas e outros que tais. Um repetir "ad nauseam" de todos os "ismos" que o mundo e o submundo haviam produzido no meio século anterior.
Em todos eles, sempre o mesmo erro: o de pensarem a história, não como uma co-criação de homens livres, mas como algo que os manuais das respectivas ideologias já trazem escrito; o de, obcecados por determinados modelos de homem e de sociedade, quererem neles encaixara realidade de qualquer modo, nem que fosse pelo camartelo das propagandas e das polícias.
Mas a revolução não eram só os generais em mangas de camisa e discursar no Sabugo, nem as "madamas de pá p'ra cima" das campanhas de alfabetização. Para lá da comédia, havia a tragédia da repressão "tout court".
É que, parafraseando Albert Camus, "para adorar por tempos e tempos um teorema, a fé não chegava; era preciso mobilizar a polícia". É que, "enquanto houvesse inimigos, reinaria o terror e haveria sempre inimigos enquanto a revolução existisse e para que a revolução existisse".
Com o Verão Quente de 1975 e o pronunciamento de Tancos, iniciou-se o processo da segunda libertação que, no entanto, só viria a consolidar-se em vinte e cinco de Novembro. Foi a queda dos garnizés, pequenos e médios oficiais, incluindo generais graduados, que haviam subido ao poleiro do poder graças a toda a sorte de bicadas traiçoeiras, quase nos tendo lançado para o lodo mais nojento que o charco do antigo regime havia produzido.
A segunda libertação, não sendo tão embriagadoramente eufórica quanto a primeira, foi, contudo, muito mais eficaz. É que os portugueses, tendo sofrido na carne e no espírito a tragicomédia da pseudo-revolução, já não eram o povo despolitizado do salazarismo nem o povo sloganizado e massificado do gonçalvismo.
Fartos de batalhas contra fantasmas do outro mundo, estavam agora lançadas as condições para descobrirmos que o inimigo verdadeiro eram as nossas próprias divisões internas.
O que nos dividia, no entanto, já não era o Velho do Restelo.
Os que partiram de Belém com Vasco da Gama já não podiam descobrir mais nada. Nem sequer o caminho marítimo para a Índia do socialismo original, pela via do terceiro mundo.
As nossas caravelas ou se afundaram tragicamente na aventura africana, ou regressaram meio arrombadas às praias ocidentais donde haviam partido. Aliás, desde que o Almirante Tenreiro as transformou em duvidosos bacalhoeiros, as mesmas já haviam perdido toda aquela sedução que exaltava os nossos épicos.
Regressados definitivamente às nossas fronteiras europeias, também já não podemos sonhar com o regresso de D. Sebastião.
Agora é que D. Sebastião talvez tenha morrido de vez.
Mas se o Desejado-ele-próprio já não pode voltar, porque as areias movediças da traição o fizeram perder, talvez o sebastianismo continue. E, o que é pior, talvez continue na sua faceta mais retrógada e obscurantista, aquela que aceita toda a injustiça, todo o crime e toda a mentira, pela promessa de um milagre.
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