Navegar para a outra banda, derrubando a margem
Eu sei que há instantes que não deixam marcas, mas que foram o estampido de um pedaço de felicidade que nos deu luz e força. Instantes que duraram um breve momento de profunda verdade. Aquela respiração, por muitos testemunhada, mas que passou e não prendeu. Que durou o tempo necessário para nos poder deixar o breve prazer de apetecer viver, mas que, depressa, se esfumou como o barulho de uma ultrapassagem a alta velocidade nas estradas de uma vida que, de vez em quando, nos deixa a vertigem de procurar.
Hoje já não foi assim, nesta segunda-feira a que só depois de algum esforço consigo dar o número do dia do mês. Fiquei parado, por momentos, à beira-Tejo, vendo passar um branco barco de cruzeiro, o holandês "Black Prince", barra fora. Agora, que não há naus que partem para a Índia, apenas vão dando ao rio da nossa partida barcaças de aposentados e ricaços que, com amortecedores contra o enjoo, sulcam as ondas nesses hotéis flutuantes com que praticam a globalização, visitando aquelas exóticas gentes de aquém e de além-mar que os sustentam e os têm que aturar, em nome das vantagens competitivas do turismo para a terceira-idade dos fundos de pensões.
Mas as águas deste rio continuam a reflectir a cinza das nuvens deste Abril que se anunciou de águas mil, no dia em que ficámos a saber que os funerais papais coincidirão com a data do começo do empolgante congresso do PSD, onde, segundo consta, 80% dos delegados já têm a orelha marcada pela candidatura de mendes, apesar de menezes conseguir o apoio da autonomia funchalense, que não é companhia de seguros sulista, elitista e liberal, mas atlântica vantagem de um jardim.
Entretanto, esparsas gaivotas vão dispersando seus voos planados à procura dos restos de lixo da grande cidade, nesta calma meia tarde, enquanto um pardalito, bem ousado, vai debicando migalhas nas mesas do esplanada, assim demonstrando uma evolutiva ecologia, nesta urbanidade cada vez mais requintadamente igual aos planos directores de todas as urbanidades. E mais um avião que passa, mais gente de viagem, mais gente de passagem. O que vale é o piar deste amigo pardal que não teme saltitar por entre os meditadores de café que vão fingindo passar o tempo.
Apetecia poder dair daqui, permanecendo aqui, olhar daqui, por dentro de mim, sulcando quem poderei ser, neste vaivem do sonho que tenho e não tenho. Apetecia continuar a sentir o silêncio da beira rio, viver o ritmo das águas batendo nas pedras do cais, ficar assim, nesta margem de mim mesmo, mas podendo ser a outra banda. Apetecia partir para o meu próprio lugar, agora que me vai doendo a nostalgia do exilado, o estar aqui sem ser daqui, e sem sequer me apetecer fingir que sou daqui. Que meu lugar é ter lugar longe daqui, em sítio de sereno viajar, peregrinando pinheirais de bruma e praias de areias longas.
Neste vaivem, onde estou quem não sou, em saudades me volvo e me converto. Vale-me o meu irmão pardal, aqui debicando migalhas, na própria mesa onde escrevo. Que ele me dá sinal de vida, na frágil leveza de um corpo breve. Enquanto a tarde vai passando e passeando, nesta liberdade de deitar fora a agenda, de ser e não-ser à minha beira, enquanto saboreio um pedaço de terra-mãe, através de uma garrafa de água mineral, com um pedaço de limão.
Chegou, de repente, um pedaço de céu azul. E o meu irmão pardal largou o espaço onde minhas mãos o poderiam acariciar. E apeteceu também não ter gaiola, horários, calendários e agendas do ter que fazer, para fingir que estou. E muito menos cartas de bancos, declarações de IRS e outras algemas de cidadão impostado, por ser trabalhador por conta de outrém, beneficiário da ADSE e contribuinte para a falida Caixa Geral de Aposentações, que é uma secção da dos Depósitos e que já foi do Crédito e da Previdência, quando tinha prego e Salazar.
E lá veio o sol, antes de ser poente. E toda a barra ficou plena deste azul de Lisboa, desta luz a mais que nos dá desejo de viver intensamente, de apetecer sentir a música que nos chega destes sinais de primavera. É a luz que me alumia e me dá sonho. E força para vencer as nuvens e penumbras que me toldam o silêncio.
E fui ao fundo das águas. E livremente preso me veio o doce prazer do movimento, de poder cumprir o desafio de atravessar o rio que nos separa. Navegar para a outra banda, derrubando a margem, nesta procura onde me vou buscando, neste prazer de viajar em mim, dentro de mim, dando o meu corpo ao movimento, em busca de um sonho que não acho. E assim disperso pelos pedaços de vida que, vividos, continuo a procurar, nesta peregrinação rumo à linha que limita a minha vida, esse risco de bruma que vai além do que sinto e penso.
Que apetecia viver e reviver, procurar longe daqui, em qualquer lugar que fosse meu, o lugar que me faça regresar, o lugar onde possa poisar meu verso, a pátria prometida que resguardo em sonho, mesmo quando penso deter as mãos fechadas que me dão revolta. E sempre este sonho de procurar quem somos, nas ruas abertas à brisa suave.
Aqui e agora, me vou sofrendo, neste correr livre da escrita em minha própria procura. Não apenas por mim. Não apenas por nós. Mas para que outros, depois de mim, possam, mais uma vez, retomar a senda da procura, o mar sem fim para onde correm estas águas, no outro lado de quem sou, onde sou mais nós.
Sempre esta procura de não achar o sonho de quem sou. Que serei sempre quem procuro e afinal não acho. A tal semente que a brisa do rio me deixa em seu vagar de esperança. Que há dias de rio e mar assim à minha beira. Dias de chegar e de regressos. De tempos que me dão tempo, estes marítimos compassos de meu caminho de cais. Esta solidão solidária que Deus me deu, pelo infinito, esse intenso sinal do tempo que, por mim dentro, me permite o mais além. O tempo de quem sou e que não acho.
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