a Sobre o tempo que passa: Os que já não metem medo e perderam os horizontes

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.4.05

Os que já não metem medo e perderam os horizontes



Certas civilizações, que alguns dizem primitivas, ainda hoje, sabem colocar, no devido lugar das aristocracias sociais, os chamados mais velhos, isto é, aqueles que atingem as altas cumeadas da sabedoria e a quem devemos pedir conselho, para seguirmos o exemplo, principalmente quando conseguem viver como dizem pensar. É assim que leio, com fervor, no jornal "O Comércio do Porto", uma breve entrevista a Albino Aroso, 82 anos, um dos nossos queridos fundadores deste regime: "Neste momento, o que vejo é os políticos a arranjar amigos e não a defenderem propriamente as suas cores políticas. Para mim, um político é sempre um homem sério, capaz de lutar por ideais".

Infelizmente, passando os olhos para outros quadrantes, reparamos como muitos outros não sabem colocar-se nos lugares a que têm direito, continuando a brincar ao poder pelo poder, ou procurando controlar a história, através da criação artificial de uma gerontocracia, onde dominam e pedincham aqueles que não sabem que, todos os anos, vão fazendo setenta anos. Desses que não reparam como todas as gerontocracias da viuveira são marcadas pelo drama de tanto não meterem medo como perderem horizontes, mas que, quando caem no vício do poder pelo poder, julgam que ainda metem medo e que ainda têm vistas não curtas.



Mas qualquer antropólogo já inventariou a razão que leva as boas sociedades a respeitarem os mais velhos. Quando estes respeitam valores como os da generosidade, do compromisso pela verdade perante um conflito, da opção pela justiça contra a vindicta, da negação da bisbilhotice, do uso responsável do dinheiro, do respeito pelos limites da propriedade, etc... Quando alguém, só pelo facto de ser mais velho apenas instrumentaliza a respectiva imagem para fazer o exacto contrário do que dele esperávamos, entramos no delírio da falta de autenticidade e daquela promiscuidade que nos faz regredir.

Reparo que tal parece ser a viciosa tendência para um enferrujamento que afecta a partidocracia lusitana, dependente dos tais ausentes-presentes que utilizam a imagem dos gerontes para a eficácia da vontade de poder. Porque Beleza quer Cavaco em Belém e Carmona em Lisboa. Porque Menezes foi mais aplaudido do que Marques Mendes. Porque Helena Lopes da Costa está na lista de Menezes. Porque Ferreira Leite e Mota Amaral vão para a lista de Mendes. Porque, no discurso de abertura do XXVII Congresso do PSD, Pedro Santana Lopes criticou os «tiros de dentro da trincheira» de que diz ter sido alvo durante a campanha eleitoral. Porque o PS apresentou queixa ao procurador-geral da República contra o presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, por “usar os dados fiscais” para “perseguir, intimidar e ameaçar” cidadãos madeirenses, “transformando os serviços fiscais, na região, numa espécie de Pide ao serviço dos interesses partidários”. Porque João Soares deverá ser o candidato do PS à Câmara de Sintra.

Quando, na politiqueirice, aquilo que antes de o ser já o era, nessa lutável luta de gigantes entre os notáveis de província e os controladores caciqueiros das cidades, temos de concluir que não conseguimos dar resposta a certos desafios a que apetecia seguir o encanto, não resistindo e seguindo em frente, mistério dentro, sem sabermos o que nos pode suceder no dia seguinte. Especialmente, quando, fartos do torpor, apetecia sermos mobilizados pelo estreito risco de bruma que marca a linha do horizonte.