César, amigo, estamos contigo
Recebi hoje a revista "Ipsis Verbis", de Oliveira do Hospital, onde escrevi um artigo, incluído no "In Memoriam de César Oliveira", que aqui reproduzo:
Tenho medo que os vindouros encerrem o meu amigo António César Gouveia de Oliveira (1941-1997) numa ficha enciclopédica que o reduza à mera categoria de historiador político português, licenciado em filosofia pela Faculdade de Letras do Porto, doutor pelo ISCSP (1986) e professor do ISCTE, desde 1976, acrescentando que foi militante do PCP até aos anos sessenta e que, depois de 1974, próximo de Melo Antunes, se tornou fundador do MES, com Jorge Sampaio e João Cravinho, quando chegou a ser alcunhado como o historiador da classe operária, para, depois, alinhar com a UEDS e aderir ao PS, tendo sido deputado desde a Frente Republicana e Socialista e, depois, presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Hospital em 1990-1994.
Apesar de ser verdade, não chega. E não basta acrescentar, em português funerário, que se tratou de uma figura generosa de militante romântico que nunca deixou de praticar a irreverência mesmo quando o seu partido estava no poder e que desapareceu prematuramente, vítima de doença prolongada. Continua a ser verdade, mas não chega ao fundo de quem sempre quis viver até ao fundo da alma. Prefiro chamar a atenção para essa figura de um português à solta que se sentia livremente angustiado pelo repensar a nossa identidade nacional aberta, em torno daquilo que qualificava como o ser cultural português. Logo, quero aconselhar que se releia esse magnífico testemunho que o meu amigo publicou, Os Anos Decisivos. Portugal 1962-1985. Um Testemunho, Lisboa, Editorial Presença, 1993.
Aí volta este país de sol a rodos, quando as sementes de inverno já iam crescendo. Aí permanece a luz deste nosso lugar comum, feito daquele penseé du midi a que se referia por Albert Camus. O tal Sul da Europa onde não entram as névoas do norte, a tal luz e sombra que nunca se deu bem com a penumbra dos calculistas.
Esta luz voltada para o Atlântico, que vai pelo Atlântico a caminho do Sul e que também se não confunde com o mediterrânico sentimento. Algo que tem o seu epicentro naquela linha que vai além do trópico e da Taprobana, nesse meridiano que os portugueses semearam nos corpos da saudade, entre a guerra e a paz.
Só que, para sermos inteiros, nesta procura, temos, de vez em quando, que peregrinar as raízes da Beira. Ir ao profundo interior dos planaltos, refrescar-nos nos castanheiros e nas cerejeiras, ir à nascente dos rios, aos glaciares antigos, subir às serras e recordar-nos dos míticos pastores que nos deram impulso.
E aí, nesses pequenos riachos da invernia, por entre as pedras, nesse mais alto que nos faz ir por dentro de quem somos. Nesses riachos que descem das oliveiras paras as águas de rios que nos dão mar. Nessas terras pontuada de pedras, com o nevoeiro lá em cima. E peregrinando tempo fora, tempo dentro, chegamos sempre à nossa serra-mãe, a essas pedras escuras de xisto castanho e oliveiras antiquíssimas, às pequenas leiras no fundo dos vales, com árvores correndo em desfilada, na contramão.
Tal como o César, também eu chamo provinciano a outras coisas, como ao falso urbanismo de província, a essa cópia feia de outros urbanos exóticos que procura desajeitadamente sair do rural, agredindo a província profunda que o cerca, mas da qual parece ter vergonha.
São tão provincianos como os novos politicamente correctos, pensados pelos que lêem semanários de fim-de-semana em vez de jornais desportivos. Provincianos são os tiques escleróticos do medo que se opõe ao contramedo, esse fundo salazarento em que assenta o facciosismo, de muitos ares de idiota pendurados num cabide de fatos elegantes, este país instalado, de castas orgânicas empedernidas que continua a querer manter-nos numa espécie de prisão.
Tenho pena que César não chegasse a emitir o necessário manifesto anti-Dantas, capaz de proclamar revolta. Tenho pena que não pudesse ter seguido até ao fim o seu próprio fim, como transparece nalguns papéis de cumplicidade que destruiu ou naquela conversa que me contou do africano que à beira de um desesperante Tejo lhe deu alento, partilhando com ele um pedaço de pão e aconselhando-o a olhar de frente a vida, para além da morte. Apenas vos convoco para que releiam Os Anos Decisivos, num rompante, notando como nele continuam desfraldadas as bandeiras vermelhas do ser do contra e as angústias quanto à procura do ser cultural português. Aí César permanece vivo, nesse lado humano assente na permanecente raiz rural, onde ainda nos comovem as descrições que faz do tempo de guerra e da morte de um filho.
Os beirões são assim: não deixam de ser o mesmo, apesar de passarem a professores, perdidos em bibliotecas ou emitindo aulas. E em César há um português que permanece, e que faz da pátria uma federação de amigos. Obrigado pelo teu exemplo. Tentarei cumprir fidelidade. Até sempre e para sempre.
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