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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.5.05

Dias de sol a rodos, nesta costa ocidental



Dia de sol a rodos, nesta costa ocidental, onde apetece saudar a braveza do mar e sentir a luz solar em sua carícia de força, neste dia de luminosa primavera, nesta luz a mais que me define, nesta viagem de sempre, em que refaço as longas raízes da esperança, a que, infelizmente, continua a faltar terra e muro.

E foram quase dois dias sem blogar, assim alheado de certo mundo, onde fiquei quase sem novas da política lusitana, dado que apenas ouvi, de raspão, que Sampaio não permite que se faça um referendo sobre a IVG em pleno Verão, a fim de permitir que as pessoas possam ir à praia descansadamente e que papistas e abortistas carreguem as baterias.



Por mim, prefiro sentir as toadas de uma infância de mar e sol, recordar os toldos postos em fila, o cheiro a peixe sêco, as ruas de vento e a areia presa no corpo. Senti o batel que os mansos bois tiravam do mar, praia acima e voltei a acariciar as velhas pedras do forte.

Neste vaivém de partir e regressar, o mar em sol e o largo espaço da maré baixa, onde vai apetecendo passear, num ir e vir dentro de mim, além de mim. "Parte, parte, ó pescador, vai à pesca da baleia... As ondas do mar são brancas, no centro são amarelas, coitadinho de quem nasce para morrer no meio delas..."



Recordo apenas a notável entrevista de Lech Walesa à TSF, onde o velho lutador demonstrou que, para além de activista, tem o bom senso de quem sabe pensar. Recordou, sobre as palavras de João Paulo II, que não foram apenas estas que derrubaram o comunismo, mas, sobretudo, a conciliação do "verbo" com "homens de acção". Porque, antes, já tinham surgido palavras e acções, mas desencontradas, salientando que o comunismo, que nunca teve medo das palavras, não conseguiu dominar o movimento libertador das nações adormecidas pela URSS que, no ano de 1989, emergiram numa revolta libertadora que se tornou incontrolável.

Por outras palavras, confirmou que o comunismo morreu como nasceu. Se se implantou porque conseguiu instrumentalizar os movimentos de libertação nacional, extinguiu-se quando o sovietismo se transformou numa prisão de nações, face a essa vitoriosa primavera dos povos que o presente capitalismo globalizante parece também esquecer.

Uma luz intensa desperta a força de quem sou, diante desta baía da memória, na praia primeira dos meus dias, onde há ondas como não há em mais nenhum lugar. E apetece ser quem sonho, para poder viver meu signo. Aqui, saudando o sol, quando o vento vai lavando restos de amargura, pedaços de um tempo que sofri. E estendendo o braços ao ar livre da tarde, vou sendo mais eu. Aqui, diante do mar, aqui, onde quem fui e volto a ser mais eu, onde quem na verdade sou me faz apetecer viver e reviver, em movimento. Tanto mar à minha beira. Tanto sonho por volver.




Há gente que passa e repassa, enquanto a rádio nos vai anunciando as eternas bichas do "stress" citadino, repetindo os nomes desses habituais locais de carros atrás de carros, queimando petróleo, em homenagem à estupidez do pretenso planeamento urbano, por causa da modernidade, do alcatrão e do cimento armado, para gáudio de autarcas, arquitectos e advogados, assim todos em baixa, por entre declarações de impostos e máquinas registadoras, com consultadorias, avenças, normativos despachos e licenças de habitação.

Apetece voltar ao tempo de sonhar, à velha figueira da quinta do monte florido, olhando o rio a circundar a cidade velha que me deu ser. Apetece voltar ao tempo de poder sonhar no que seria depois da curva do caminho, além do vale de inferno, da conraria, da estrada que nos dava Sul e matura idade. Agora, me vou voltando, ao tempo de ter tempo. E paz. De apetecer viver todo o tempo que tenho, em signo.