a Sobre o tempo que passa: Das árvores que morriam de pé à floresta em nebulosa

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

12.5.05

Das árvores que morriam de pé à floresta em nebulosa



De repente, tudo o que estava na gaveta funda das nossas investigações jornalísticas veio à luz das parangonas. Até apareceram especialistas juridicistas na tipificação do espaço diabolizante que vai da corrupção ao tráfico de influências, onde a ficção dos chamados "casos práticos" das hipóteses académicas, os tais que são praticamente teóricos e teoricamente práticos, saiu do sobremundo e da metalinguagem para as redacções dos jornais, sem o filtro da drª Maria José Morgado. E todo o ouvinte comum ficou assim sem tempo para respirar, dado que ainda nenhum medalhado da Universidade de Georgetown veio à praça pública dizer que, numa sociedade aberta e pluralista, o normal é haver anormais, como a Dona Maria da Cunha, o Senhor Grupo de Interesse e o Doutor Grupo de Pressão. Meter cunha, defender interesses ou pressionar um decisor político nunca foi crime. Mas "traficar influências" ou "comprar o poder", sim. E ninguém pode chegar a sérias investigações jornalísticas e judiciárias sobre a matéria, caso não consiga distinguir a realidade do financiamento partidário da mera ficção académica. Todos estamos a aprender. Esperemos que se possa compreender a floresta, depois de se analisarem tantas daquelas árvores que costumavam morrer de pé, no tempo da Palmira Bastos.

Por isso, prefiro salientar uma notícia do meu Calino, segundo a qual as instalações e o terreno envolvente da empresa Transportes Jaime de Dias, de Coimbra, foram vendidos ontem em hasta pública. E eu, coimbrinha, recordo o grande "slogan" que marcava essa firma de camionistas: "o mundo gira, Jaime Dias roda". Agora, apenas posso notar que os portugueses têm de trabalhar 135 dias este ano para pagar as suas obrigações fiscais, refere um estudo da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa, divulgado quarta-feira. O financiamento partidária nunca teve exposição pública na montra da partidocracia, até porque, nas instalações dos nossos monopolistas da participação política cimeira, há sempre portas para o cavalo e traseiros não registáveis, mas acções de cooperação, directa ou em espécie, e muitas engenharias de favores, típicas da velha encomendação feudal.



Noto que todos os negócios do Estado português celebrados após a dissolução da Assembleia da República, a 10 de Dezembro, estão a ser investigados pelo Ministério Público, segundo a SIC. Começo a fixar os nomes da Escom, da Multigere e do GES que não é BES, apesar do cimento espírito santo. Leio que o inquérito que levou à constituição como arguidos dos ex-dirigentes do CDS/PP Luís Nobre Guedes e Abel Pinheiro é apenas uma parte de um conjunto de inquéritos autónomos relacionados com corrupção e tráfico de influências na administração central. Observo que o juiz que na Boa Hora determinou as medidas de coacção aos arguidos no caso dos sobreiros esteve entre 2001 e 2004 como juiz de instrução na Polícia Judiciária Militar. Pelas mãos do magistrado Carlos Alexandre passaram casos de fornecimento de material militar às Forças Armadas portuguesas, onde surgem os nomes de vários oficiais, inclusive generais, mas também situações de exportação fraudulenta, que acabaram por entrar no foro criminal. É o caso do fornecimento fictício de fardas à Polónia, que, num processo de 2001, lesou o Estado em cerca de dez milhões de euros.



Dizem que o medalhado Paulo Portas chega hoje e que o ex-conselheiro superior da magistratura, Castro que também é Nobre, quer falar-lhe rapidamente. Que o gestor do BES investigado dirige consultora do grupo nos negócios da Defesa. Que a Inspecção-Geral de Finanças avaliou participação ruinosa da Companhia das Lezírias no projecto Portucale, mas não apontou o dedo a ninguém. Relatório já falava da dificuldade em declarar a utilidade pública do projecto. Ouço um consultor da SONAE e do FCP proclamar: "o meu partido teve uma atitude muito digna. Ninguém se pôs aos gritos que havia aqui uma cabala ou uma perseguição seleccionada ou uma violação do segredo de justiça orientada para destruir partidos ou direcções partidárias ou para fazer ajustes de contas". Já Ribeiro e Castro, muito democraticamente cristão, que se encontra em Estrasburgo, disse que o partido estava de “consciência tranquila” e que acreditava que o alegado tráfico de influências era de um equívovo”. Até o porta-voz do ministro dos Negócios Estrangeiros acusou ontem Luís Nobre Guedes, arguido no processo sobre as suspeitas de tráfico de influências no caso Portucale, de ter divulgado a informação de que foi um parecer jurídico de Freitas do Amaral que sustentou o despacho de viabilidade do projecto turístico do Grupo GES em Benavente. A consciência tranquila da direita dos interesses já foi chão que deu uvas.



Afinal as notícias e o mundo giram, mas os camionistas da Jaime Dias já não rodam. Outras são as viagens transatlânticas e planetárias. Vale mais ir com Balsemão à próxima reunião do Clube de Bilderberg, para onde este ano o ex-primeiro -ministro escolheu Morais Sarmento e António Guterres, depois de, no ano anterior, ter levado José Sócrates e Pedro Santana Lopes. Bem gostaria de aí ser mosca. Julgo que seria um exclente estágio de direito internacional económico, grupos de interesse e grupos de pressão. As árvores não morrem de pé se forem decepadamente sujeitas ao conceito de utilidade pública golfista. E lá vamos perdendo posição no "ranking" mundial da competitividade, ficando-nos, agora pelo 45º lugar, entre 60 países inventariados. Ora, não há magistrado que consiga detectar a imaginação criadora deste regime de medidas de efeito equivalente às ajudas do mundo dos negócios ao mundo das decisões políticas. Nenhuma hipócrita legalidade alguma vez controlou o que só a moralização da política consegue. Se quisermos ter espinha.