a Sobre o tempo que passa: É disto que o meu povo gosta!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.5.05

É disto que o meu povo gosta!



Uma pátria é uma comunidade de significações partilhadas (Karl Deutsch, dixit...), isto é, ser português nos últimos trinta anos significou entendermos "Ripa na rapaqueca!", "Qué qué isso, meu?!" ou "É dito que o meu povo gosta...". É por isso que há vida depois da morte do jornalista e locutor desportivo Jorge Perestrelo que faleceu sexta-feira à noite em Lisboa, aos 57 anos, vítima de enfarte do miocárdio. Ser português, no dia da 1697ª edição do "Expresso", o grande educador das classes A e B que estão, agora, na vanguarda do choque tecnológico, passa também por recordar que há 20 anos, no dia 7 de Maio de 1985, Carlos Alberto da Mota Pinto morreu vítima de um aneurisma na aorta. E se há quem o lembre como político, alguns milhares recordam-no como professor, como é o meu caso. E até me lembro dele como ministro, de que fui funcionário, no velho ministério do comércio e turismo, quando não apareciam notícias, dizendo que em sete anos foram criadas em Portugal 150 empresas municipais, o equivalente a metade dos municípios existentes no país (309).



Voltando a Mota Pinto, gostaria de salientar que, como educador, o meu querido professor tinha aquela veia da aventura e do pragmatismo que gostava de suscitar nos alunos o excêntrico e o culto da imaginação, como aquela de dar o nome de "Assembleia da República" ao nosso parlamento, quando uns, e bem, defendiam que o mesmo devia assumir-se como "Cortes da República" e outros não conseguiam sustentar a ideia jacobina de "Assembleia Nacional", só porque o salazarismo havia usurpado esse democratíssimo nome, ainda hoje usado na pátria de 1789. Não resisto a contar dois episódios em que tive uma pequena intervenção. Primeiro, quando ele apareceu como ministro do comércio do governo de Mário Soares e onde quase interrompeu a alta burocracia para preparar, no edifício da Avenida da República, as respectivas provas de agregação. Na altura, era o contador destas estórias simples técnico superior de 1ª classe numa direcção-geral dele dependente, carimbado como perigoso direitista, por antes ter sido adjunto de um ministro do PPD no VI Governo Provisório. E um certo dia, lá fui chamado a sua excelência, dado que este, esquecido do meu nome, queria conhecer o jovem "fascista" que a tecnoburocracia revolucionária denunciara ao ministro. Fartou-se de rir quando me viu entrar no gabinete e me reconheceu, pelo que logo me foi pedindo algumas informações e contando certos pormenores da respectiva actividade, nomeadamente quando recrutava adjuntos entre alguns jovens que ele descobria por uma simples e imaginativa carta que lhe remetessem. Confesso nunca ter conhecido pessoa mais rápida na análise de um "dossier", depois da conversa com um técnico, dado que cinco minutos depois de ser inteirado de uma matéria com que acabava de tomar conhecimento selectivamente, era capaz de fazer um discurso lógico e arrasador, só possível de ser emitido por quem fosse possuidor de uma profunda cultura e de uma capacidade de gerar confiança nos colaboradores. E, neste ponto, muito se assemelhava a outro professor-político, com quem também colaborei, o saudoso António Luciano Sousa Franco.



Alguns anos volvidos, voltei a encontrá-lo como Primeiro-Ministro. Na altura, quando eu era "twentyager" e continuava a procurar compensar o magro ordenado de assistente além do quadro com um posto de vencimento como técnico da função pública, havia sido recrutado para adjunto do ministro da agricultura, Professor Apolinário Vaz Portugal, ministro do governo presidencial que Mota Pinto liderava. Acontece que eu tinha sido encarregado de elaborar o parecer político-jurídico que deslindava o caso da intervenção do Estado na maior firma portuguesa de lacticínios e com linguagem directa, chamando os bois pelos nomes, não havia cedido às pressões dos "lobbies" das partes negociais envolvidas, com uma parte representada por um então célebre advogado e deputado do PS e com outra encabeçada por outro célebre advogado e dirigente do PPD, chegando a juntar ao processo as evidências das golpadas. Mota Pinto, ao despachar a coisa, pediu ao ministro para lhe explicar qual o adjunto comuna que ele tinha e que o mandasse ir a São Bento. Quando ele me viu entrar, voltou a gargalhar: "então, meu fascista, tu agora é que és o comunista?". E despachou imediatamente, conforme a minha sugestão.



A partir de então, desempenhei algumas missões discretas de apoio ao chefe do governo, nomeadamente no processo de desintervenção das cooperativas agrícolas que o PCP tinha assaltado e vi como Mota Pinto chegou a ser capaz de obrigar a máquina burocrática a tomar decisões que, nascendo de estudos feitos antes da hora do almoço, eram aprovadas pelo conselho de ministros de tarde e publicadas no jornal oficial na própria noite (recordo-me, pelo menos, de uma delas, sobre a elegibilidade dos sócios das mesmas cooperativas agrícolas, dado que o PCP, bastante legalista, ainda usava, para resistir, decretos com força de lei da Ditadura, subscritos por Carmona...). Foi cá uma limpeza legislativa, mesmo sem choque tecnológico!... Até tive direito a ordem do Conselho da Revolução para me ser movido um processo disciplinar, dado atentar contra as conquistas da revolução, com direito a relatório de Vasco Lourenço, pessoa que, aliás, muito prezo!

Já agora, acrescentando o final da história sobre a desintervenção na firma de lacticínios, quando a Nestlé ainda não mandava tudo e ainda não tinha como advogado o escritório do Dr. Júdice, a decisão que o governo tomou foi contrária aos interesses representados pelo deputado do PS, mas este, não se dando por rogado, levou a que a Assembleia da República aprovasse uma deliberação que não ratificava o decreto governamental. Ao que parece, por portas travessas, a outra parte teve a sorte de ver a mesma publicada com algum atraso do jornal oficial, podendo, a tempo, concluir as escrituras de regresso à normalidade empresarial... Um dia direi o nome das celebridades envolvidas, dado que ainda tenho esses papéis guardados no sótão...