Depois da nostalgia e do delírio, a luta continua
Anteontem foi o último dia de um certo Abril. Foi justo o luto nacional decretado pelo governo. Foi sentida a homenagem dos camaradas comunistas ao respectivo mentor. Foi serena a intervenção da comunicação social. Foi digna a democracia, aquela cultura que, segundo Ortega y Gasset, exige o diálogo entre os adversários. Até começou a vislumbrar-se que o lugar comum das diversidades é o amor de pátria, sem muitas guerras civis frias quanto aos objectivos nacionais permanentes. Mas os passamentos de Gonçalves e de Cunhal apenas demonstraram que eles eram os ausentes-presentes de uma nostalgia, digna, utópica, mas passada. Hoje já é tempo de interregno. Antes de sermos assoberbados pela questão europeia e de muitos delirarem com a próxima manifestação dos "skinheads". Mas Blair já disse tudo: "vamos primeiro tratar dos problemas políticos, de forma apropriada, e depois tratamos da constituição". E Sócrates decidiu que já não faz sentido o referendo em Outubro. Vai para uma "pausa não contemplativa". Por outras palavras, os grandes líderes da Europa, apoiando a dupla Barroso/Junckler, decidiram manter viva a mobilização das forças conscientes do "não", onde me integro, ao colocarem o texto valério na prateleira e não no congelador. Proponho que o mesmo se mumifique!
Por isso é que, ontem, foi difícil descobrir uma notícia surpreendente, até que me chegou a da corajosa atitude de Maria José Nogueira Pinto, que decidiu renunciar ao cargo de provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e candidatar-se a edil lisboeta, na mesma altura em se diz que Maria de Belém Roseira não se apresentará em Oeiras e que Isaltino é disciplinarmente processado. Sou um dos apoiantes assumidos de José Sá Fernandes e, mesmo que não o fosse, dificilmente apoiaria Maria José, mas não posso deixar de reconhecer a humildade democrática e o sentido de serviço que ela assim manifesta, iniciando uma caminhada de investimento para uma liderança política feita de coragem. Como observei numa breve conversa telefónica com o jornal "A Capital": «Se o dr. Carrilho achava que esta campanha ia ser um passeio, está muito enganado», defendendo que a multiplicidade de candidatos vai ditar «um voto de identidade», em que os cabeças-de--lista serão mais importantes que os partidos. Neste sentido, destaquei a qualidade dos cinco concorrentes ao cargo, sublinhando que estas eleições podem transformar-se numa disputa «muito renhida» com «debates interessantes podendo levar a uma diminuição da abstenção».
É evidente que não merece comentário o confronto parlamentar entre Nuno Melo e Ana Drago, um exercício de diversão demagógica quase equivalente à divulgação de um sítio, dito da irmandade não sei quantos, que muitos estão a levar a sério, mas que, para mim, não passa de uma manobra promovida por todos aqueles que têm como loucura empobrecer Portugal, lançando para a marginalidade a irrenunciável dimensão luso-africana que já faz parte da presente identidade nacional. Os candidatos à liderança nossa extrema-direita que continuam a traduzir em calão os racistas e xenófonos de outras Europas que não a nossa, apenas merecem o meu desprezo.
Saúdo, portanto, a reportagem do mesmo jornal "A Capital" de hoje, onde o jornalista Nuno Guedes demonstra a história do arrastão que nunca existiu, porque a confusão mostrada pelas fotografias que correram mundo só aconteceu quando chegou a polícia. Daí que subscreva o editorial de Luís Osório: O arrastão, afinal, não existiu. O comunicado da PSP foi precipitado, as primeiras páginas dos jornais nitidamente alarmistas, as notícias que abriram os noticiários televisivos multiplicaram os efeitos, vários comentadores falaram sobre a crescente insegurança, políticos mostraram-se consternados, e o Presidente da República não demorou a marcar uma visita ao problemático bairro da Cova da Moura. Mas a reportagem de Nuno Guedes não deixa margem para dúvidas: não houve qualquer arrastão em Carcavelos. Mais: não houve qualquer queixa registada na PSP da zona. Estamos, ao que tudo indica, perante uma das maiores mistificações de que há memória em Portugal. Uma mistificação gerada por um racismo crescente, não só da parte dos brancos diga-se, e por um clima de insegurança que torna muito difícil imaginar o que poderá acontecer a médio prazo.
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