a Sobre o tempo que passa: Tempos de espera, dias de véspera

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.6.05

Tempos de espera, dias de véspera



Um dia, quando abrimos o jornal, e somos todos especialistas nos meandros mais tecnocráticos da Europa; no outro, analistas dos pormenores mais íntimos da história do PREC; em seguida, discutimos os crimes sexuais de Michael Jackson e podemos dar profundas opiniões sobre o sistema judiciário norte-americano; finalmente, temos que fazer a psicanálise do cunhalismo, até porque mais de metade da classe política lusitana têm relações apaixonadas com o ex-líder do PCP. Uns porque foram comunistas ou maoístas, outros porque deixaram de ser comunista ou passaram para a direita, transformando o antigo anjo vingador do salazarismo em diabo social-fascista.

Distante, dentro de mim pensando, vou olhando o tempo que vai passando, vou sentindo esta gente de meu povo, desde sempre alheada dos grandes processos de decisão, sobre a pátria, sobre a Europa e sobre a própria comunidade local. Sinto como o processo dominante da mega-democracia representativa e opinativa, privilegiando a eficácia aparelhística, acaba por desviar o homem comum da própria cidadania.



Quem tinha dúvidas sobre como o comunismo é um sucedâneo da religião, pode agora concluir como se encerrou um certo ciclo de lembranças sobre o século XX, desencadeado pela morte de João Paulo II. Já todos esquecemos Trapattoni e a vitória do Benfica sobre o Sporting, as disputas entre Bagão Félix e Vítor Constâncio ou os delírios de um militar gonçalvista que, num "Forum" da TSF, anunciava que um grupo de fiéis do PREC, estava preparado para fazer um golpe de Estado, tão convicto como a recente entrevista de João Salgueiro na televisão. Como se em Portugal ainda fossem possíveis, no plano meramente técnico, os golpes de Estado, ou como se tivéssemos suficiente independência para brincarmos à macro-economia caseira. O país talvez tenha deixado de ser o país-teatro de operações ou o país do escudo e do ministério da finanças. Nestes domínios, a nossa independência passa por gerirmos as nossas dependências ou por prevermos adequadamente as nossas interdependências.



E tudo se consegue disfarçar quando não é posta em causa a confiança pública nas grandes lideranças. Só que o desastre do vazio liderante pode suceder se repararmos que quem manda não passa de malta com cara de plástico que apenas tenta moldar-se e moldar-nos, segundo o ritmo desta mediacracia, tele-democrática e quase tele-evangelista, segundo o processo da também plastificada personificação do poder, que ocupou o palco visível do Estado-Espectáculo.

Esta gente que se passeia, desconfiada da política, temendo o desastre da economia, começa a dar-se conta que a rua pode tornar-se ameaça, pelo imprevisto de um qualquer arrastão. E que muitos milhões podemos perder com a difusão de uma simples notícias, porque o que não se gastou em segurança e se perdeu na pequena corrupção autárquica dos patos baravos e dos favorzinhos oartidocráticos acaba por explodir em pleno dia. Mesmo que seja o dia de Portugal.



Portugal deveria ter uma missão a cumprir, não sendo admissível que os respectivos chefes políticos continuem meras figuras decorativas, mobilizáveis para comícios de politiqueirismo na pátria dos outros. Já chegam os sacrifícios que fizemos para Barroso gozar a reforma de presidente da comissão europeu; ou os sonhos que pomos para Guterres ser ACNUR, depois de presidente da Internacional Socialista. Nisto, Cunhal sempre era mais beirão, teimosamente esteta. E Vasco Gonçalves, talvez mais patriota, em seu silêncio de derrotado.