a Sobre o tempo que passa: Breves conselhos de viagem, para além das férias

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.8.05

Breves conselhos de viagem, para além das férias



Imagem picada em Vagabundo


Os minutos demoram e dóem quando se espera uma partida, quando se espera o começo da viagem, especialmente quando se viaja pelo prazer da viagem e quando se espera que a espera passe depressa e se volva em esperança, de mergulhar na noite à procura de Sul. E quanto apetece a viagem de, contigo, viajar, de, contigo, despojar meu ser dos restos de quem não sou, de, contigo, viver e reviver.

E noite dentro a viagem se desdobra por mim dentro. Leio. Tento esquecer. E ingresso, de vez em quando, no tempo que vou esquecendo. Regresso. E, nesse poiso de sustento, imerso, na imanência que é transcendência, devagar, regresso ao profundo silêncio. Durmo.



Viagem onde reaprendo a navegar nas ondas de um mar interior. Nessa conversão a um signo maior de um tempo que tem de ser. Na plenitude que é diluir-nos em todos os outros. Que a matéria não deve andar antes do mestre. Que a imaginação tem de conquistar o poder. Que nos temos de libertar das dogmáticas tenazes que nos alcunham. Que são precisos diálogos transversais que correspondam à pluralidade de pertenças de cada indivíduo. Que devemos criar movimentos e não cristalizarmo-nos em instituições que perderam o sentido. Que urge o sonho de fundar uma qualquer coisa mais autêntica.

Sobretudo para quem tem o fascínio do contrapoder. Porque tudo o que seja perturbar me fascina. Porque estou farto das habilidades políticas a que dão o nome de reformas. E porque o desejo de certo centro, mole e difuso, mata qualquer espécie de palavra mobilizadora. Porque o centro, neste sentido, é completamente totalitário, dado que silencia o pensamento. Sobretudo quando ele é invocado pelo aparelhismo desse "lui" que continua a dizer que "l'État c'est moi" e que nós somos o resto provinciano a educar...



Nesta rapidez da viagem, a saudade de outras viagens com demora. Que cansam viagens longas demais para tão curto tempo. E apetecem viagens que sejam devagar que, passo a passo, absorvam milhas, sentindo o deslizar dos dias, a mudança do corpo, a adaptação da alma. Que correr é desprezar o espaço e não permitir a procura do que nos falta e para onde vamos. Correr assim é não saber mudar. É sermos sempre os mesmos em qualquer lugar.

Aquilo que julgamos concreto nesta lufa-lufa de quem não sabe converter-se ao espírito do lugar não passa de mais uma desenraizada abstracção, carregada de preconceitos. típica daquele que apenas conseguirá ver aquilo que seja confirmação da sua própria previsão. Logo, circum-navegar deixa de ser descobrir e, sobretudo, redescobrir, descobrindo nos outros aquilo que se oculta dentro de nós.



Importa viajar sem a ligeireza do turista. Daquele que tudo pensa captar porque apenas quer viajar para fazer suas as prévias sensações já registadas por escrevinhadores de viagens. E apetece ser parcela de outra viagem que seja parte de uma viagem onde apeteça cumprir livremente o meu destino. Quando o tempo circula em mim. Quando as mãos do tempo me dão viagem. Quando podemos ir na descoberta do sentido íntimo dos lugares. O que talvez seja não ter mesmo nenhum lugar.



Porque quando a viagem nos faz peregrinos, vagabundos que são romeiros de um sentido para o mundo, sentimos cada passo como o cumprimento de uma missão. Todos os que têm a força desse sentido não podem mesmo ter um qualquer lugar que os limite. São de todo o mundo. E apenas o tempo os vai cansando, apenas olhando o fim como o momento em que o corpo já não pode ter mudança, sem mercer estar vivo.

E assim me sonho, quando vou escrevendo de um jacto sem saber o que comanda a minha mão, neste pontuar linhas sobre o papel, procurando desafiar o sem espaço do mistério.



O tempo da descoberta nunca nos custa. Mesmo num sítio desconhecido, fazemos sempre bolhas nos pés, no primeiro dia da estadia, nessa corrida para vencer o desconhecido, nesse percorrer em círculos concêntricos o espaço que tem por núcleo o ponto de encontro onde brevemente estacionamos e que pensamos nosso.