Momentos II. Quando a água, amarga de sal, nos faz mais vida
Aqui e agora, esperando que o sol vença as nuvens da manhã, esperando que a luz e o calor do Verão dissipem a carapaça cinzenta e densa que o mar nos trouxe. E olhando assim por dentro de quem sou, vou sentindo em sonho o pensamento, sem me perder no desassossego de quem não quer viver por si, dentro de si. Sinto que, às vezes, sou menos do que sou, quando, ao pegar na caneta, diante de um papel, não consigo atingir o ritmo de uma escrita quase automática, dessa que vai fluindo por dentro e nasce livremente, como água na fonte da montanha.
Sinto que, de vez em quando, me vou imaginando em ritmo, nestas reportagens íntimas, onde procuro captar os meandros de bruma de que faço parte. Sinto que há sempre as mesmas ideias, as mesmas metáforas, as mesmas frases, as mesmas palavras. Como se outrem se escrevesse através de mim, nesta compulsão da palavra por cumprir, neste desvelar das secretas vozes que, dentro de mim, vão conflituando e gerando este doloroso prazer dos muitos cadernos, agendas e blocos que, não sendo propriamente diários, estão intimamente ordenados.
São nebulosos sinais como a espuma das ondas em seu vaivém, pedaços de alma que o corpo vai guardando quase sem porquê, quando é a própria caneta que assim me vai moldando. São palavras escritas em muitas cores de outros tantos marcadores, como dantes eram os aparos e os tinteiros, os vários instrumentos com que me vou gerando, cada um deles com o seu próprio formato de letra e onde, apesar da variedade, há sempre uma linha de fundo que me dá identidade.
E assim se vai o tempo que passa, nestes cadernos de férias, que não são propriamente livros de férias, mas sinais de um caminho que tenho, todos os dias, que voltar a percorrer. Especialmente quando o o breve frio cinzneto deste Verão nos faz apreciar os intervalos solarengos que nos dão a cor íntima dos lugares de que somos peregrinos.
Especialmente quando sentimos o agreste dos montes de urze em momentos de vento amainado e sem nuvens no céu, para que a beleza das praias nos reverdeça. Com o azul das águas sentido no alto das falésias negras. Com as pequenas baías que se descobrem na curva da estrada. Onde há promontórios e frescas serras, o esforço das figueiras, as isoladas casas nos montes, as pedras de xisto quebradiço onde nos inscrevemos, a solidão dos sobreiros e as fronteiras de silêncio que nos bordejam.
E assim vamos sendo quem sempre fomos, quando o tempo nos dá espaço de saudade futura e a água, amarga de sal, nos faz mais vida, braços, areias e ondas bravas amainando a fúria do sol. Podemos colher coentros e pescar anchovas, ter a sombra fresca dos pequenos pinheiros e olhar as pedras de um cais que sempre foi partida. Para que nasça sempre um novo dia no alto das arribas da própria vida, dobrando a raiva que sofria e vencendo a névoa amarga dos tempos de renúncia.
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