No silêncio das imagens, a voz da revolta. Actualizado
Sou um puro e duro neto de campónios que, na cidade educado e vivido, quer ser rural, dado que me foi dado aprender e apreender o sentido das árvores, o correr das ribeiras, a breve leveza dos pássaros e a fragilidade das flores silvestres. Tenho também o desnível típico das breves colinas, o agreste das brisas e a variedade de um valado verdejante, onde a suavidade aparente daquilo a que, à distância, chamam paisagem, esconde alguns pedregulhos, certos silvados e a microscópica vida intensa de biológicos e minúsculos seres. Sobretudo das formigas e das lontras que, dia a dia, escavam e levam pedaços de húmus e restos de bichos e plantas.
Por trás desta máscara, feita olhos de menino, mãos de escrever e adornados cabelos e barbas, esconde-se um ser feito revolta, pleno da fúria de viver, que tem as mãos calejadas pelas cordas que subiu a pulso, com unhas que ficaram negra pelo terra que amassou, para moldar em barro a sua própria estátua de sonho.
Não tenho a vaga fé dos nostálgicos que procuram o regresso da magia, nem a messiânica , ou angélica, crendice e ânsia por cumprir dos que esperam um qualquer encontro, de um qualquer grau, iniciático ou profano, com a aparição do transcendente.
Humano, demasiado humano, assento meus pés nus no lodo e nas vísceras do quotidiano pecado, pleno de tentações e pulsões que me varam e me penetram. Mas também não deixo de procurar olhar as estrelas, as noites de luar ou de, em pleno dia, ousar sentir de frente a violência solar.
Humano, demasiado humano, me sinto apenas um pedaço da minha própria história, tanto da pessoal como da colectiva, ambas imaginadas pela experiência.
É por isso que, às vezes, no silêncio da madrugada, me chegam súbitos sinais de vida e gritos por dar, talvez por causa do meu quotidiano treino no exercício da palavra como missão, nisso a que chamam poesia, que é pensar a palavra viva, para viver meu pensamento e sentir o que vou pensando.
Sinto assim que sou, definitivamente, um nómada da tal poesia viva. E que quanto mais envelheço mais menino me cumpro e mais procuro que assim não deixe de ser, sob pena de perder o sentido. É por isso que confio na plenitude da palavra sentida, dessa que corre como um rio, depois de jorrar em frescura de sentimento, pelo silêncio da noite acordada, quase como água nascendo na fonte da montanha.
Foi este o impulso que brotou hoje em mim e me fez acordar em plenitude. E me obrigou a ter de escrever neste repente o desalinhado da palavra peregrina, prenhe de metáforas repetidas, de ritmos que já foram sentidos, de confidências quase intermitentes e obsidiantes, que vão saltitando de ramo em ramo, por entre os últimos restos de trevas que os raios de um sol de Verão, dentro de momentos irão lavar.
<< Home