a Sobre o tempo que passa: Chuva, capitaleiros, voyeurismo, freitismos e missas por alma de Salazar e Franco

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.11.05

Chuva, capitaleiros, voyeurismo, freitismos e missas por alma de Salazar e Franco



A fluida chuva vai plenificando o ar da manhã e todos vamos sorvendo as gotícolas de um molha-tolos que nos vai felizmente ensopando. Fecho os ouvidos às notícias que nos trazem os bailados das candidaturas presidenciais e os discursos enlatados dos principais actores do processo. As pingas continuam impertinentes, insistentes, saudosas, enchendo barragens secas, lavando as ruas cinzentas da cidade e convidando-nos a ficar em casa. E não apetece circular pela engenharia analítica do nosso político-social, porque em tais teias não vislumbramos qualquer sinal de esperança, mesmo que os qualifiquemos como do mal, o menos.



Os capitaleiros são uma estreita casta social que há dois séculos vive entalada entre as sinecuras concedidas pela mesa do orçamento, distribuídas pelo Terreiro do Paço, e o culturalmente correcto, gerado pelas divagações etéreas na linha de Cascais, com direito a férias no além-Portela e finíssima educação nas mecas da Europa e dos States. São eles que proclamam em quem povo deve votar, para atingirmos a modernidade, e como o mesmo povo deve ser educado, para se livrar das trevas medievais. Há dois séculos que eles estão sempre de acordo com o vento novo e até conseguem conjugar o tempo do verbo da moda que passa de moda.



Os últimos exemplares desta espécie em vias de extinção, filhos de gente bem salazarenta, viveram os delírios sessentões da extrema-esquerda do "make love, not war", apesar de agora teorizarem a moderação com as tesouras do verbalismo radical, não vá alguém reparar que só é novo aquilo que se esqueceu. Para visitarmos a reserva ecológica onde ainda se manifestam esses descendentes dos sucessivos devorismos que fazem apodrecer os nossos regimes políticos, basta visitarmos alguns dos repositórios das representações sociais de tais donos do poder, percorrendo algumas folhas de opinião que nos querem controlar e certos livros de pretensas memórias, onde eventualmente podemos excitar-nos com alguns "voyeurismos" e inconfidências.



E lá vamos ouvindo em fundo o ruído dos presidenciais que não passam de mera consequência de uma teia sistémica que lhes dá causa. Não passam de regressos anunciados, de simples expressão de certa literatura revisionista de justificação, onde a invocação de vidas passadas apenas anuncia a eventual chegada de mais uns louros para as distintas biografias que já ostentam. Vale-nos que o ministros dos estrangeiros em Portugal clama contra a presidência britânica da União Europeia, dizendo que Londres não assume uma política entusiasticamente europeísta, enquanto de Espanha nos vêm ecos das manifestações franquistas do Vale dos Caídos, trinta anos depois da morte do dito generalíssimo.


Felizmente que, por cá, já não se fazem missas em memória de Salazar, pois os respectivos ministros e hagiógrafos preferem um lugar de quentinho tacho, nas comissões de honra dos presentes candidatos presidenciais. E não o fazem como os tradicionais viracasacas e adesivos, mas antes como confirmadores da efectiva evolução na continuidade, assim demonstrando que, para além dos regressos, o que é permanecente nesta decadência da pátria reduz-se à falta de vergonha, nessa moluscular postura dos flexíveis sem espinha que sabem gerir as flutuações do politicamente correcto.



Na verdade, todos os situacionismos coincidem na mesma gentalha de perfil ministerial, onde os ministros do "ancien régime", à espera da viradeira, nunca iriam a missas por alma do defunto que serviram, coisa que apenas cabe aos maluquinhos extremistas que não sabem fazer a tradicional bissectriz, que vive dos oportunismos dos que sabem ler os sinais dos tempos.