a Sobre o tempo que passa: Condicionamento industrial, Salazar, Sérgio e D. António Ferreira Gomes

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.2.06

Condicionamento industrial, Salazar, Sérgio e D. António Ferreira Gomes



Dia 14 do mês de Fevereiro importa recordar que em 1931, nesta mesma data, foi instituída a base do chamado condicionamento industrial, quando dentro do regime da Ditadura Nacional já estava consolidado o modelo de Ditadura salazarenta das finanças, prévia à emergência ideológica do corporativismo. Até porque este, paralelo à experiência austríaca de Dolfuss, liquidada pelo nazismo, acabou por se transformar num corporativismo estatal, sem economia de mercado, mas com economia privada, aproximando-se do intervencionismo proposto pelo socialismo catedrático.



Paradoxalmente, algumas das fundamentais contestações ao corporativismo salazarista vêm de correntes com idênticas origens. A contestação do socialismo cooperativista de António Sérgio (1883-1969) mergulha num associativismo guildista e numa ideia de autogoverno tão anticapitalista e tão não-individualista quanto as concepções sociais de Salazar. A contestação dos católicos critica o mesmo corporativismo por não ser suficiente corporativo.



Disso é sintomática a carta dirigida em 13 de Julho de 1958 pelo Bispo do Porto, D. Antonio Ferreira Gomes, a Salazar, segundo a qual o corporativismo foi realmente um meio de expoliar os operários do direito natural de associação, de que o liberalismo os privara, e que tinham reconquistado penosa e sangrentamente. O mesmo Bispo do Porto, aceitando em Salazar a lucidez do raciocínio e o bem fundamentado das posições em matérias de política externa e de política ultramarina, criticava acerbamente o salazarismo social, observando, de forma incisiva, que a Igreja "comprometeu-se", não com o Estado corporativo, mas com a ordem corporativa da sociedade, citando Pio XII, para quem se cometeria uma injustiça, ao mesmo tempo que se perturbaria seriamente a ordem social, se fossem retirados aos agrupamentos de ordem inferior as funções que esses agrupamentos estariam em condições de exercer eles próprios.

Na verdade, o corporativismo salazarista distanciou-se da vertente societária ou associativista que o corporativismo em sentido amplo exigia, pelo menos na vertente da doutrina social católica, como veio a ser particada pela economia social de mercado da geração democrata-cristã do pós-guerra, não podendo aproximar-se daquilo que estava em vigor nos regimes não-autoritários de Estado-Providência, essa forma que o neo-marxismo qualifica como Estado social-democrata e que outros referem como corporatismo liberal.

Aliás, quando o regime da constituição de 1933 foi derrubado, emergiu um modelo socialista, de cariz colectivista, que manteve alguns dos instrumentos legislativos do intervencionismo salazarista, dado que, com ele coincidia, no plano do estatismo. As formas das nacionalizações e da própria criação de empresas públicas, tão utilizadas pelo gonçalvismo e pelo socialismo revolucionário, depois dos acontecimentos de 11 de Março de 1975, vinham, aliás, do antigo regime. Mesmo na fase pós-revolucionária do regime da Constituição de 1976, mantiveram-se e alargaram-se alguns dos elementos introduzidos pelo salazarismo, principalmente as pessoas colectivas públicas das ordens profissionais.