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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.5.06

O filme do 28 de Maio de 1926, visto no dia 29, quando as cenas ainda continuavam, com o PCP em Congresso

Manuel de Oliveira Gomes da Costa (1863-1929) parte de automóvel, a caminho do Norte, no dia 26 de Maio, chegando ao Porto no dia seguinte. Segundo Raúl Brandão, tinha cabeça de galinha e é sempre da opinião da última pessoa com quem fala. Para Fernando Pessoa, o Chefe que trouxe, grande figura de soldado, foi um chefe inteiramente ocasional; não conspirou, revoltou-se, como ele muito bem disse.

As 8 horas e 30 minutos, do dia 27, chega ao Porto. Às 22 horas atinge Braga. A conjura começara a ser urdida na ressaca do 18 de Abril, com muitas pontas na teia. Numa delas, José Mendes Cabeçadas Júnior, capitão de mar e guerra, e irmão do capitão do Exército João Cabeçadas. Noutra, o grupo de Filomeno da Câmara, Raúl Esteves e Sinel de Cordes, subsidiados por Luís Charters de Azevedo. Entre os diversos nós de tal entrelaçado, o tenente de cavalaria João Pereira de Carvalho.


Sempre requisitado por todos, o General Gomes da Costa mantém contactos com o professor do Instituto Superior do Comércio José Eugénio Dias Ferreira, cujo caso académico tinha desencadeado a greve académica de 1907.


O governo tinha pleno conhecimento das movimentações e até chega a parlamentar com alguns dos ninhos conspiradores, numa reunião ocorrida em Coimbra, com os ministros da guerra, José da Conceição Mascarenhas, das Finanças, Armando Marques Guedes, e da agricultura, Torres Garcia. Ao que parece, o governo tenta ser ele a encabeçar a possível ditadura que muitos ambicionam e a própria embaixada britânica teme que António Maria da Silva se assuma como o novo líder autoritário, considerando-o como o nosso potencial líder fascista. Amílcar Mota chega mesmo a conseguir aliciar Roberto Baptista, democrático, que havia sido chefe de gabinete de Sebastião Teles, durante a monarquia.

Em Lisboa, Mendes Cabeçadas entrega a Bernardino Machado carta onde, em nome de vários oficiais, pede um governo de carácter extra-partidário, constituído por republicanos que mereçam a confiança do País.


Inicia-se o movimento em Braga às 6 horas da madrugada do dia 28. Em Lisboa uma Junta de Salvação Pública lança manifesto, subscrito por Mendes Cabeçadas, Gama Ochoa, Jaime Baptista e Carlos Vilhena (1889-1988).


O governo de António Maria da Silva, estabelecendo a censura nos jornais, lança nota oficiosa, onde diz que há sossego no país... apenas uma parte da guarnição de Braga está revoltada.


Bernardino Machado decide ouvir os vários chefes políticos, na parte da tarde, quando já tinham chegado a Lisboa, notícias do movimento de Braga.


Recebe também Mendes Cabeçadas que havia sido preso quando se dirigia a Santarém, juntamente com Gama Ochoa e Brito Pais.


Gomes da Costa dá uma entrevista ao jornalista Norberto Lopes, do Diário de Lisboa, onde declara que seria constituído um governo militar, composto pelas pessoas que dirigiram o Movimento, falando na necessidade de um triunvirato que seria apoiado por um Conselho Técnico.


Em Braga, continua reunido desde o dia 27, o Congresso Mariano, contando com a presença de D. Manuel Gonçalves Cerejeira.


Cunha Leal também está na cidade dos arcebispos, almoçando com apoiantes. Discursa no Bom Jesus, criticando o partido democrático, outrora obediente à ameaça do chicote de nove rabos do Dr. Afonso Costa, mas que agora nem sequer tem um chefe. É um instituto tresmalhado. Não perdoa também ao que resta do partido nacionalista: nem toda a mole ambição do sr. Ginestal Machado, nem todas as intrigas do sr. Pedro Pita, nem todo o maquiavelismo do sr. Tamagnini Barbosa são susceptíveis de inspirar confiança à nação…é um organismo parasitário.

Há alguma resistência de forças fiéis ao governo. No Porto, o general Gastão de Sousa Dias, comandante da guarnição, impõe a censura à imprensa e proíbe a circulação de veículos. Em Santarém, assume-se o coronel Fernando Freiria, que chega a prender Mendes Cabeçadas. Em Braga, o general José Domingos Peres, comandante da divisão, depois de receber o emissário de Gomes da Costa, Pinto Correia, prefere retirar-se sem resistência, mas sem aderir. Em Coimbra, aparece nos comandos o ministro da agricultura, Torres Garcia. Em Lisboa, o governo tem como aliados o governador civil, Barbosa Viana, e o director da Polícia Especial, capitão Teodorico de Sousa. As próprias unidades militares de Lisboa, a nível dos grandes comandos, parecem obedecer ao comandante de Divisão, o general Simas Machado, que sucedera a Alves Roçadas.

Gomes da Costa emite uma nova declaração onde sublinha: vergada sob a acção duma maioria devassa e tirânica, a Nação sente-se morrer. Eu por mim revolto-me abertamente. Numa entrevista a um jornalista, acrescenta:
revolto-me com todo o exército português em nome da pátria... eu, que nunca choro, chorei lágrimas de sangue, lágrimas de raiva e desespero, pelos desesperos da Pátria amordaçada pelas quadrilhas partidárias, ao sentir o ulular faminto das clientelas vorazes que se esfaimam a roer os ossos de Portugal. Malditos!.

O mesmo Gomes da Costa, numa entrevista ao jornal do Porto, o Primeiro de Janeiro, observa que este movimento é militar, mas não é militarista... Se o exército inicia, organiza e realiza este movimento é por se reconhecer como única entidade com poder e força para cumprir o que a opinião pública exige.

No Jornal do Comércio e das Colónias, Augusto da Costa entrevista Fernando Pessoa, onde este confessa que há uma espécie de propaganda com que se pode levantar o moral de uma nação – a construção ou renovação e a difusão consequente e multímoda de um grande mito nacional. A entrevista continua no número de 5 de Junho de 1926.

Governo de António Maria da Silva apresenta demissão, no dia 29, quando o Movimento já é obedecido em quase todo o país. Contudo, ainda há um conselho de ministros, presidido por Bernardino Machado, nas instalações do governo civil, até que, ao começo da noite, o Presidente da República aceita o pedido de demissão do governo. A nota oficiosa da presidência da república dando conta da exoneração é emitida às 23 h e 30 m.

No mesmo dia, a guarnição de Lisboa adere a Gomes da Costa, numa atitude apoiada pelo comandante da polícia, Ferreira do Amaral. Entretanto, o ministério da marinha, é ocupado por um grupo de oficiais, sargentos e praças da Armada, comandado pelo outubrista Procópio de Freitas que diz querer colaborar com o comité revolucionário de Mendes Cabeçadas, mas declarando ao jornal O Século que a Marinha não dará a sua adesão a um Governo de carácter militarista.

Ainda a 29, Carmona, que está em Elvas, assume o comando da 4ª divisão em Évora.

Enquanto isto, realiza-se o II Congresso do PCP em Lisboa, na rua António Maria Cardoso.

Manifesta-se, entretanto, uma Junta Militar Revolucionária, com Ferreira do Amaral, mas sem Cabeçadas, dissolvida no mesmo dia, declarando acompanhar o movimento de Braga, mas que logo se dissolve.


(amanhã, mais cenas de uma peça que vai durar cerca de meio século...)