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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.4.07

Os moços são bacharéis e querem bacharelar acerca da coisa pública e à custa da mesma coisa acerca da qual bacharelam

Tentando contribuir para o estudo das causas que levaram, ontem, o ministro Gago à dolorosa operação de contenção do apodrecimento da ideia de universidade, reparo que já na entrada do último quartel do século XIX, Ramalho Ortigão observava que a mocidade vive nas antecâmaras do governo como os antigos poetas do século passado nas salas de jantar dos fidalgos ricos. Os velhos são agiotas ou servidores do estado. Os moços são bacharéis e querem bacharelar acerca da coisa pública e à custa da mesma coisa acerca da qual bacharelam. Porque o nosso profundo mal está na nossa profunda indiferença. E explicava a causa: o sistema representativo tem sido sempre, por toda a parte, considerado como uma forma de transição entre a condenação da monarquia absoluta e o advento da soberania popular. Ora é bastante duro obrigar um povo ou uma parte de um povo a conservar-se eternamente fiel a uma instituição interina.

Com efeito: em Portugal os partidos acabaram há muitos anos. Não existem divergências de opinião sobre qualquer princípio capital que interesse ao país inteiro. Como o interesse do país desapareceu, a urna fica entregue ao arbítrio da autoridade, e os círculos eleitorais convertem-se em burgos podres. Os regeneradores com os cabos de polícia elegem a maioria, os grandes proprietários com os seus caseiros e os seus amigos votam nas oposições. A vontade popular é muda e passiva, o que quer dizer que as fontes íntimas da vida nacional estão obstruídas ou secas.

O mesmo Ramalho, prosseguindo a análise demolidora, lamentava não termos uma dialéctica à maneira britânica: não há uma oposição perfeitamente e fortemente constituída e assinalada, não há uma maioria consistente e robusta e para manter os apoios oscilantes o governo acode submissamente às exigências dos pequenos corrilhos, promete, desdiz, cede, transige, compra, troca, vende, intriga, e cai de fadiga, apupado e corrido.

Assim, sem os partidos fortes, único motor capaz de imprimir um jogo tão regular às engrenagens do regime constitucional como o que existe na Bélgica e na Inglaterra, achamo-nos quase no estado atomístico de Hegel, na desagregação em virtude da qual cada molécula social, entregue por sua desgraça à liberdade quase absoluta, volteia às cegas em busca de um novo centro de atracção.

Ramalho escrevia um quarto século depois de termos instaurado, ainda estremunhados pelo autoritarismo cabralista, uma sociedade pluralista e aberta. Gago, ontem, lancetava uma degenerescência típica desse ambiente. Confundir o fundo da questão com a exemplar vida de estudante do senhor Primeiro-Ministro poderá ser trágico. Eu que continuo a ter a lucidez de ser ingénuo, apenas julgo que José Sócrates Pinto de Sousa foi uma vítima das circunstâncias e que, por isso mesmo, tem toda a legitimidade para evitar que outros incautos sejam apanhados.

Julgo que, sobre a matéria universitária, seria útil que o Presidente Aníbal Cavaco Silva pedisse ao principal líder da oposição, o descendente do Luizinho do Paçal (ver JN de hoje), antigo docente da mesma UnI, para estabelecer, com o PS, um pacto regenerador de luta contra a doença da bacharelização e do doutorismo.

Por mim, confesso que era capaz de fazer
, ao conselho científico da minha universidade pública, uma proposta de contratação, como professores convidados, tanto de José Sócrates como de Luís Marques Mendes, de acordo com a lei vigente e com aquilo que considero a avaliação do mérito, assente num "curriculum". Atribuía a um a regência da disciplina de "Partido Socialista", e não de engenharia, enquanto que desafiava o outro para a de "PSD" e não de direito processual civil.

Espero que, amanhã, José Sócrates tenha a grandeza de ser humilde e que nos ajude a libertar deste ambiente poluído que confunde o poder com o saber e com o qual não poderemos enfrentar os desafios da democracia e da sociedade do conhecimento. Que ele seja um político exemplar que, para isso, tem os suficientes títulos de legitimidade. Porque se voltássemos às manias da "república dos catedráticos", o único líder oposicionista que tem uma vida universitária de grande mérito é o Professor Doutor Francisco Louçã e não me parece que, por isso, o tenhamos que sufragar em termos de opções políticas.

Demos a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, mas sem que a César ou a Deus pertença tudo...