a Sobre o tempo que passa: Regresso à ideia clássica de universidade

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

9.4.07

Regresso à ideia clássica de universidade

Repito o que disse em Outubro de 2000:

Contra o legalismo e a corrupção

Mas o sistema educativo português, e principalmente o modelo de ensino superior, não peca apenas nos princípios. Falha também no domínio dos instrumentos, da metodologia. A começar pelo vício da elefantíase legislativa, com a consequente interpretação da lei pela via do hierarquismo da circular e a crescente irresponsabilidade do comunismo burocrático.

Quase todas as leis emitidas em Portugal sobre o ensino superior privado nunca foram cumpridas até à exaustão. Primeiro, porque o abstracto legislador nunca ouviu o avisado conselho dos que mais sabem teoricamente sobre a matéria e que por acaso até são os mais práticos. Ora, o pior que pode acontecer a uma lei é que os respectivos executantes, reconhecendo a impotência na passagem da vigência para a eficácia e faltando-lhe a cobertura da validade de uma lei justa, tratem de a pactuar pela barganha, abrindo necessariamente a porta à corrupção individual e institucional.

Por causa deste erro da política legislativa é que somos o quarto país mais corrupto da União Europeia. O que também deve ser verdade no âmbito da política educativa. Porque quanto mais proibicionismo emitimos, mais corrupção temos. Com efeito, os países onde melhor a dimensão pública da política educativa são aqueles onde mais importância o sector privado do ensino superior.

Se é verdade que quanto mais Estado, pior Estado, não é, contudo necessariamente verdade o laxismo do quanto menos Estado, melhor Estado, como muitos colectivistas interesseiros da nossa história acabaram por praticar.

Neste últimos anos de Portugal não é só no âmbito da política de segurança que, depois de uma aparente bonança de laxismo, se sucedem erupões cutâneas de ciclotímico furor de autoritarismo intervencionista e proibicionista, num ritmo quase esquizofrénico. Também na política educativa, depois de um largo período de “salve-se quem puder” desregulativo, onde foram sobretudo abolidas as regras da conjunta justa e se esqueceu que nem tudo o que é lícito é honesto, depressa chegou o regulamentarismo inquisitorial.

Contra o planeamentismo e o inquisitorialismo

Neste sentido, importa eliminar, de forma exaustiva, a mentalidade planeamentista dos burocratas da educação. Há que pedir ajuda a pais, professores, alunos e empregadores, sobretudo a quem vive a aventura quaotidiana das escolas, das aulas, da sucessão de gerações

Os burocratas ministeriais, sindicais e estudantis

A burocracia dos tecnocratas da educação, aliada à burocracia do corporativismo sindical e à burocracia do associativismo estudantil contituem as principais barreiras que nos desfocam a realidade da educação viva e vivida. Entre discursos abstractos, chavões de fotocópia e reivindicações repetitivas, continuamos a ser pautados por uma renda de bilros que nos embaciam o bom senso.

A consequência: um regime de sargentos verbeteiros

É neste ambiente que voltam a medrar os sargentos verbeteiros que apenas seriam ridículos se não se desse a tragédia de poderem alcançar as cadeiras governamentais, os quais fazem sempre perder as energias colectivas na construção de um grande ficheiro, esquecendo que hoje o Big Broter já não é escrito por Aldous Huxley mas pelas produções Teresa Guilherme.

Os revolucionários frustrados

Há também que atender ao facto dos revolucionários frustrados do Maio 68, que assaltaram lugares universitários no tempo do PREC, quando as passagens administrativas e o privilégio do não concurso público se conjugaram com o saneamento selvagem dos mais qualificados, terem agora concluído o seu termo nos domínios do cursus honorum universitário, ocupando muitos deles lugares cimeiros na estrutura de certas universidades públicas. Ora, muitos deles não perderam o sentido inquisitorial e pidesco do animal de horda e continuam a ter como modelo o voyeurismo da delação.-

Superar a falsa dialéctica público/privado

Finalmente, importa superar a falsa dialéctica público/ privado. Com efeito há que distinguir a titularidade da função e ter a humildade de reconhecer que uma entidade na titularidade de privados pode, na verdade, exercer funções públicas e que uma entidade na titularidade pública pode apenas encobrir interesses privados. Ora, sou capaz de dizer que parte significativa do sector público do ensino superior é bem pior que parte importante do ensino superior privado.

A aventura da qualidade

Não há universitário sem sentido de risco. Porque o universitário é aquele que, pela sua maturidade, conquistada pela concorrência pública, por um concurso público, fica habilitado a poder proferir juízos responsavelmente justos, sem necessidade de se acobertar na irresponsabilidade de uma qualquer remessa para o comunismo burocrático de um hipócrita à consideração superior.

Ser justo, avaliar pelo mérito é o preciso contrário da arbitrariedade, onde, dentro da legalidade, se estabelece um escalonamento, apenas susceptível de ser atacado por abuso de poder ou desvio de poder.

Libertação, liberdade e igualdade

Importa talvez recordar que a missão fundamental da educação é ajudar o homem a libertar-se por si mesmo e dentro de si mesmo; ajudar o homem a lutar contra a despersonalização do homem; transformar cada homem numa ilhota de subjectividade que só mediante a comunicação pode participar no ser (Gabriel Marcel). Só depois desta libertação é que a liberdade social é possível; só depois desta libertação é que a igualdade se torna realizável. Porque a igualdade, enquanto sinónimo de justiça, sempre foi o exacto contrário da inveja igualitária, dado que sempre impôs que se tratasse desigualmente o desigual.

Regresso à ideia clássica de universidade

Daí que a universidade, enquanto universitas scientiarum, deva ser o sítio onde se procura passar da mera opinião sobre todas as coisas ao conhecimento de todas as coisas, enquanto conhecimento do todo; onde se procura integrar o socialmente útil no sentido da existência do homem na sociedade e no cosmos; onde se procura passar da técnica à sabedoria, ajustando a alma ao movimento global do universo. A universidade, como a escola primeira, não é uma escola do saber fazer, mas uma escola onde apenas se aprende a aprender; onde cada um dos que nela se consideram formados obtêm o título de licenciados, de homens que obtêm licença para continuarem a estudar por si mesmos.