a Sobre o tempo que passa: Os pecados de Sócrates...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.4.07

Os pecados de Sócrates...

Logo à noite, o cidadão José Sócrates Pinto de Sousa, na sua intervenção televisiva, já está condenado a não poder falar de política, porque toda a hierarquia de valores já está invertida e passámos a girar esquizofrenicamente, em torno de um "fait divers". Confesso que pouco me incomoda que um engenheiro técnico se assuma como engenheiro sem o correspondente adjectivo, mesmo que tenha sido grave tal conduta, mas julgo que Sócrates já foi mais do que punido por esse eventual desviacionismo. Incomodar-me-á muito mais que ele faça disso uma discussão sobre o sexo dos anjos. Os problemas de Portugal não podem ser derimidos por teológicas bizantinices.

A questão da Independente não pode ser resumida a esse pormenor, o drama dos milhares de estudantes com a ameaça do vazio de escola e de professores e estudantes no desemprego são bem mais importantes do que um ofício de um responsável governamental do ambiente à procura de equivalências numa universidade onde também era docente o actual líder da oposição. Julgo que esse período de alguma embriaguez das privadas já nos deixou suficientes ressacas e que não é o regresso ao farisaico que nos pode salvar a cidade e a universidade.

Sobre a matéria, vale mais dizer que falharam os ministros, os inspectores e os avaliadores, como também falharam os próprios professores, especialmente os publicamente titulados, quando deixaram que os seus nomes cobrissem com um manto diáfano do prestígio coisas para onde eles não mandariam os próprios filhos, parentes, amigos ou conhecidos. Isto é, falhámos todos, quando, reparando nos buracos laxistas do sistema os instrumentalizámos em benefícios individualistas, ou de lógica de instinto do crescimento do poder, nomeadamente da cunhocracia neofeudal.

Sócrates errou tanto quanto outros politiqueiros que assumiram a confusão dos títulos e as fraudes àquilo que muitos pensavam estar em vigor, as velhas leis sumptuárias destes restos de fidalguices, onde muita falsa nobreza e muito falso clero quiseram continuar a sociedade de ordens, em plena ética republicana, segundo as concepções de Kant. Por mim, que sou de Coimbra, nado, criado e estudantado, sempre soube que na minha terra natal reduzíamos o "sôtôr" ao "vase de nuit".

Contudo, bem gostava que houvesse, por cá, alguma ética puritana que tanto punisse os eventuais erros de Sócrates quando o corrupto ou o evasor fiscal. Se, por milagre do céu, acabássemos de entrar nesse ambiente, onde, em vez dos colectivismos morais das seitas, houvesse o sentido moral da autonomia das pessoas, com profundo estoicismo à mistura, eu ficaria muito feliz. Era sinal que todos iriam viver como pensavam, sem pensarem como, depois disso, iriam viver...