a Sobre o tempo que passa: Que os repúblicos sejam homens livres, mas com âncora!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

11.5.07

Que os repúblicos sejam homens livres, mas com âncora!

Muitas vezes se tem dito, e é uma verdade, que não há mais país livre sem instrução, nem um país pode ser bem governado, quando as ciências que mais contribuem para ilustrar os governantes se abandonam ao desamparo

JOSÉ JOAQUIM LOPES PRAÇA, 1868


Pediram-me os senhores estudantes da licenciatura em ciência política da minha escola para, logo à tarde, fazer um balanço de uma década de vida de tal opção. Depois de tentar resistir ao desafio, porque não gosto de falar em voz alta daquilo que tenho denunciado no silêncio dos claustros e dos capítulos, acabei por ceder, porque não gosto de continuar a ser confundido com uma função que não tenho. Nunca inspirei tal entidade, nunca a dirigi, a não ser quando, durante dois meses, há mais de um lustro, a tentei salvar da má ideia que a gerou e da teimosia dos que a fingiram dirigir, e não estou disponível para ser um falso D. Sebastião, tipo mestre-escola super-acumulador de disciplinas, para risada da comunidade académica, que talvez não conceba as ciências sociais como um universo sincrético, onde um professor, por ser director administrativo, pode acumular a coordenação de 26 disciplinas, de duas unidades de coordenação cientifico-pedagógica, do mega-centro de investigação da entidade, etc., etc., enquanto o seu número dois, vírgula um, e colega de lista ocupa 24 disciplinas, o seu número dois, vírgula dois, 21, o seu número dois, vírgula três, 11, mais quatro ou cinco cargos, e outros seus dilectos aliados de lista yes, minister mais umas séries de igual dimensão, enquanto jovens aliados boicotam aqueles que responsavelmente se dedicam àquilo que os professores responsáveis podem fazer como homens comuns, inspeccionáveis pela lei do bom senso e avaliáveis pela lei da república.

Mas estou disponível para, numa solução de salvação pública, assumir a racionalidade de natural coordenação de uma secção de especialistas que prepare as decisões em regime de efectiva igualdade de oportunidades, sem que, anticonstitucionalmente, haja perseguidos, por assumirem, em exercício público de cidadania, certas concepções do mundo e da vida, ou por se terem desvinculado de associações que pretendiam ser representativas de uma província do saber, e de que fomos fundadores, mas que acabaram por ser mero enfeite de uma universidade concordatária, na sua bela e conseguida operação de engenharia, para a obtenção de subsídios do Estado laico. Há pessoas que bem mereciam receber a carta que Otelo mandou a Vasco Gonçalves quando este ultrapassou o prazo de validade, até para os revolucionários de opereta.

Ainda ontem assisti ao espectáculo de um leilão de náufragos, dito conselho científico, onde se disputaram cadeirinhas e cadeirões ao bom estilo de RGA, sem prévia proposta fundamentada dos peritos publicamente concursados, onde ilustres e menos ilustres membros levavam livrinhos com que acenavam os seus altos méritos para esse movimento de massas de três dezenas de um concílio de pretensos deuses, numa degradação que atingiria o paradoxal se acontecesse numa escola com um milhar de doutores, como alguns dos nossos parceiros da UTL. Aliás, quando um ilustre jovem, especialista na geopolítica do Pacífico, se candidatou, sem prévia conversa comigo, a uma disciplina que há um ano me havia sido distribuída, e na qual investi algum saber e muito suor, decidi dignificar o cargo com a invevitável renúncia, para não confundir o meu conceito de saber com o restrito conceito de poder do spoil system.

Fica, no intervalo da desgraça, o meu contributo público e documentável aqui, com o suave protesto que insiro no portal, na linha de outra não esquecida perseguição de 1993, ainda em vigor, apesar de tal prestação de serviços à comunidade, mesmo com o portal em arquivo morto, ultrapassar um milhão de acessos e de ter que ser actualizado a expensas da minha própria bolsa, até poder voltar a ser um homem livre, em livre federação de resistentes, sem prévio nihil obstat do hierarquismo concentracionário da personalização do poder.

Prefiro repetir o que disse num texto sobre o balanço da área em Portugal, publicado, há uns anos, pela revista de uma unidade orgânica da concorrência, e recordar o que propus, há mais de uma década, no relatório de agregação sobre a matéria:

"Quando uma comunidade se desintegra culturalmente, desenraizando-se do húmus onde se aconchegam e vivificam os respectivos valores e, sobre um vazio de pertenças, apenas actuam os holismos de um Machtstaat - por exemplo, a exigência do imposto -, pode criar-se um aparelho de poder desligado da comunidade, ou um estado de violência susceptível de justificar eventuais actos de violência e, quiçá, a própria legítima defesa daquele individualismo que, perante um vazio de solidariedade, já não é capaz de invocar o aqui d’el rei.

Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização cultural.

Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raul Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Pelo menos, poderia contribuir-se para a não repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo ..

Neste dobrar do milénio, nós, os ocidentais, que fomos capazes de, em nome da ciência, construir uma civilização, até nem podemos ter a pretensão de a ordenar. Num tempo de velocidade, vertigem e impaciência, neste império do vazio e do efémero, continua a faltar-nos uma concepção do mundo e do homem, uma concepção da vida, que entenda o homem e o mundo como um cosmos, dotado de uma ordem que nos faça olhar para cima e para dentro. Continuam a dominar concepções do homem e imaginários típicos do iluminismo e do romantismo, bem como ideologias e ideias-feitas para séculos pretéritos, e não temos a alternativa de uma nova fundamentação para os presentes sinais dos tempos, dado que continuamos a não querer misturar o lume da profecia com a serenidade da razão.

Ao longo destes anos em que nos temos preocupado quase exclusivamente com a politologia, sempre procurámos aceder a tal província do saber de forma comparativista. Com efeito, seguindo o conselho de Almerindo Lessa, não vale a pena descobrir o que já está descoberto, nem inventar o que já está inventado. Neste sentido, não há que temer ser estrangeirado, desde que sejamos capazes de seguir o conselho de Fernando Pessoa no sentido de nacionalizarmos importadas tendências , até porque não nos parece poder haver pensamento sem pátria, porque só é possível atingir o universal, partindo do local e peregrinando pelo supra-paroquial. Aliás, como proclamava o nosso Miguel Torga, talvez o universal não passe do local sem muros, do aqui e agora das nossas circunstâncias desafiado pelas exigências da cidadania do género humano.

O caso-limite a rejeitar talvez esteja naquela forma do professor português de filosofias estrangeiras que realiza um ensino de tradução e nem sequer cuida de fazer corresponder os conceitos importados às nossas próprias palavras. Insistir nesta via é aceitarmos ser colonizados, mesmo que disfarcemos a cedência com as bonitas palavras do progresso, da modernização ou da europeização.

Da mesma maneira, seria suicida assumirmo-nos como laboratório para experiências sociológico-políticas, visando a confirmação de teorias que outros elaboraram sem nos terem em conta. Se foram tristes algumas cenas do PREC, quando nos tornámos numa espécie de potencial reserva das ideologias e das utopias de certos marginais do Ocidente, continua a ser doloroso prestarmos menagem e citação a alguns politólogos do desenvolvimentismo e da mudança política que nos continuam a comparar a um república de bananas, embora temperada por uns pretensos brandos costumes, onde até poderiam instituir-se estufas de democracia exportável para o Terceiro Mundo ou a Europa do Leste. Soa a ridículo sermos transformados em simples palco para filmes sobre golpes de Estado na América Latina ou para mimetismos sobre o fascismo italiano, nessa permanecente leyenda negra que, à maneira de certas páginas de Byron, nos imagina como um país de bárbaros latinos com dois ou três ministros e um chefe de protocolo, civilizados e polidos.

Mas, se não devemos ser província, isto é, terra vencida por um qualquer centro de saber estranho à nossa índole, seria tolo não acompanharmos o movimento geral das correntes de ideias do nosso tempo, abrindo as janelas de par em par e tirando trancas da porta, mesmo que surjam resfriados ou que fiquemos mais susceptíveis aos assaltos. Infelizmente, a ciência política em Portugal continua a padecer da nossa pequena dimensão universitária, onde, em vez de um harmónico small is beautiful, se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem.

Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar para trás reaccionário.

Ora, uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentzias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas ou de lentes miguelistas pelos liberais, num semear de intolerância que continuou por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.

Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.

Mesmo na actividade intelectual, dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra, eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências à ilusão do mediático.

Muitas vezes, fomos um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sendo sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que voltavam a radicar-se no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado-exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, onde os próprios opinion makers se desligaram dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português. A inevitável colonização cultural e o consequente niilismo não tardaram a chegar, matando a esperança, a vontade de manutenção de uma autonomia cultural e a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante as respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação desse espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.

Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo, quem está disposto a lutar contra a pela sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre, pela recíproca defesa das mediocridades e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação, corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública.

Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim de semana que vão traduzindo as últimas novidades do vanguardismo e quando a própria universidade se vai eriçando na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia, da dramaturgia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.

Alguns brilhantes teorizadores portugueses continuam a dividir o mundo segundo as dimensões da direita e da esquerda, mas padecendo daquela visão paroquial e demonizante de certos fantasmas da década de sessenta do século XX, segundo a qual até personalidades que se autoqualificam como da esquerda liberal passam a ser determinados como da direita democrática, para que, a partir de tal posição, não exista mais mundo polido e civilizado, mas tão-só as trevas da reacção.

Continuamos a sofrer os efeitos daquele gnosticismo típico do século XIX que irmanou cientismo, materialismo e positivismo, de tal maneira que qualquer governante dos dias que passam, ou dos imediatamente antecedentes, não deixa de invocar a Luz contra as Trevas, o Progresso contra o Atraso e a Modernização contra o Bloqueio.

Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda, vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve. Assim, refere uma hard right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma soft right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e colocando Leo Strauss como chefe de fila. Na banda contrária, enumera uma hard left, onde destaca a escola dependencista representada pelo ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso (sic), e uma soft left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.

Contudo, se tentássemos utilizar os critérios de Almond, onde a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu, ou foi o domínio de um dos hemisférios, pelos esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio niilista.

Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se, governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamento de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.

Acaba por ser mais importante o modelo dos conformismos estruturais, onde os situacionismos, sejam de esquerda ou de direita, acabam por irmanar-se, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda. Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos acabem por confundir-se em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.

As relações dos intelectuais com a reflexão política em Portugal vivem entre o reviralhismo e o modismo, categorias com que procuramos aportuguesar o againstism e o movimentism de Giovanni Sartori. Com efeito, em Portugal, mesmo as minorias intelectuais com intervenção na política não cessam de viver em rebanho, para, numa curva da estrada, caírem na tentação de serem conselheiras de um qualquer césar de multidões, como ameaçam os neopopulismos de esquerda e de direita.

A power elite à portuguesa já não circula apenas nos passos perdidos, dado que os principais factores de poder deixaram de ser manifestação interna da soberania e mesmo os que dela estão dependentes foram readquiridos por uma nova actualização da classe bancoburocrática que não se reduz apenas ao comunismo burocrático dos funcionários, gestores públicos e dirigentes partidários, entre a Linha de Cascais, a Foz do Douro e os banhos nas praias algarvias, com bisbilhotices nos semanários políticos, lidos pela snobbery dos radical chic e dos young urban profissionals.

Os antigos analistas e comentadores políticos foram substituídos pelos fazedores de uma opinião attrape tout, os quais, mesmo quando têm responsabilidades universitárias, deixam transformar-se em canalizadores da opinião política ou em simples fabricantes de má língua, uns tentando vender a democracia segundo métodos herdados da agit prop social-fascista ou anti-social-fascista, outros levando ao rubro o decadentismo de alguns salões de certa burguesia queirosiana.

O divórcio entre a razão e a emoção, ou, dito por outras palavras, entre o exagero de uma racionalidade racionalista e um global entendimento do simbólico, aberto à racionalidade axiológica, tem levado os cultores da frieza analítica à demagogia e à cedência face às legitimidades carismática e tradicional.

Por tudo isto, importa ganharmos consciência da nossa dimensão, percebermos que, mesmo integrados na União Europeia, temos de viver com aquilo que cientificamente temos e que não deveríamos viver acima daquilo que produzimos, dado que esse excedente de sociedade de abundância que por aí pulula é artificial, resultando de subsídios dos outros que, longe de significarem solidariedade, apenas constituem contrapartida indemnizatória face aos factores internos de poder que cedemos ao conjunto.

Quem não tiver consciência desta realidade, está a perder aquela fibra multissecular que nos deu o essencial do que somos. Aquilo que Herculano, muito simplesmente qualificava como a vontade de sermos independentes. Esse qualquer coisa que nos levou a ser Portugal livre, quatro séculos antes de Maquiavel ter inventado o Estado. Quatro séculos e meio antes de Bodin ter inventado a soberania. Seis séculos antes de começar a balbuciar-se a teoria do princípio das nacionalidades. Essa fibra portuguesa que suscitou 1640, 1820 ou aquela geração que tratou de cantar os heróis do mar por ocasião do Ultimatum.

Tal como sempre, o nosso actual demoliberalismo padece dos males da falta de influência dos intelectuais sobre a actividade política; das manias das falsas elites em confronto com a tentação populista e vanguardista; da falta de tradição partidária em comparação com a enraizada democracia da sociedade civil; da permanente tentação do confronto entre um pretenso Portugal Novo e um real Portugal Velho.

Por tudo isto, a ciência política tem também direito ao desencanto (à Entzaubrung de Weber), a consequência inevitável do desenvolvimento de uma perspectiva racional-normativa, marcada por uma exagerada moral de responsabilidade, num universo ainda carregado de legitimidades tradicionais e carismáticas e que só pode racionalizar-se pelo recurso ao esforço de uma moral de convicção, geradora de uma perspectiva racional-axiológica.

E aqui estamos nesta viragem do milénio, já com espaço existencialmente vivido para dizermos que todas as revoluções que aspiram à instauração de um homem novo, acabam por adiar as necessárias reformas do homem de sempre.

Assim tem acontecido em Portugal com todas as manias de um Estado Novo que, apenas fazem uma operação plástica à parte visível do inamovível iceberg do Portugal Velho. Porque, não sendo possível a criação do homem novo, a forma do político apenas se assume como o novo continente onde se derrama o conteúdo vital do português de sempre.

A fuga ao modelo do bom senso por parte dos opinion makers da actualidade tem impedido uma reflexão capaz de aprofundar as raízes da nossa democracia, onde há uma história plurissecular e a consequente democracia da sociedade civil.

Além disso, com a não ligação do mundo académico à reflexão sobre a questão política e com a liquidação dos grandes gabinetes de estudos dos partidos políticos, não foi favorecida a necessária passagem do regime da opinião ao regime do conhecimento. Curiosamente, desde que as fundações alemãs deixaram de operar em Portugal, os três grandes partidos defensores da democracia pluralista, deixaram de investir nas respectivas escolas de quadros e nem sequer têm estabelecido relações não interesseiras com os núcleos de estudos politológicos das instituições universitárias existentes. Isto é, sem termos opinião crítica, a opinião pública passou a ser usurpada pela opinião publicada, onde o poder instalado, nomeadamente nas televisões, continua a ter a ilusão demiúrgica de canalizar a liberdade de expressão do pensamento, promovendo, a partir do situacionismo, uma oposição conveniente, mas silenciando aquelas oposições que seriam incómodas, porque potenciais mobilizadoras de uma maioria moral e de uma maioria sociológica. Daí que as direitas e as esquerdas instaladas, depois de favorecerem a visibilidade de opinion makers oriundos da extrema-esquerda e da extrema-direita, aparentando pluralidade, apenas contribuíram para a ditadura do estado a que chegámos, recentemente reforçada pelo quase monopólio da reflexão tele-política por comentadores oficiosos do situacionismo.


A universidade só pode ter razão a médio e a longo prazos. Se trabalha nas coisas perenes, tem, contudo, que reflectir a partir das circunstâncias do tempo e do espaço onde se movimenta, porque as essências apenas se realizam através da existência.

Aliás, os mesquinhos detractores dos professores universitários esquecem, quase sempre, este investimento no saber pelo saber, esta consultadoria pública que não cobra honorários nem se integra em gabinetes de projectos subsidiados por fundos públicos, nacionais ou comunitários, onde muitos mercenários se escondem.

Mas quem tem como profissão, e vocação, o pensar a política, só pode procurar aproximar-se de uma qualquer dimensão científica se tentar viver a verdade, dizendo o que, na verdade, pensa. Porque a ciência, enquanto esforço racional que visa fazer ascender a opinião ao conhecimento, não tem que excluir necessariamente o compromisso da opinião, essa força vital nascida de uma concepção do mundo e da vida. Antes pelo contrário!

A autêntica ciência política, enquanto real ciência da política, pode e deve permitir que pessoas livres, com diversas e contraditórias opiniões, assentes nos mais variados subsolos filosóficos, comuniquem entre si, através dos lugares comuns do conhecimento. Mas só há diálogo quando se procuram tais placas giratórias da dialéctica que, tendo como fundações os princípios gerais do pensamento, permitem que as ideias e os valores fecundem criativamente as várias perspectivas das inevitáveis posições parcelares que cada um possui.

A principal objectividade a que podemos aceder, quando tratamos de coisas políticas, é, pois, a de assumirmos, sem disfarce, as limitações de perspectiva das concepções do mundo e da vida dos nossos tribalismos político-culturais que, quando são enraizados numa história pessoal de convicções, geram sempre as limitadoras algemas de uma certa genealogia de subsolos filosóficos e os inevitáveis compromissos das velhas lutas e dos profundos companheirismos que lhes dão identidade.

Logo, os professores que querem ser mesmo professores e não assessores do poder, em nome de um pretenso governo de sábios ou de uma gerontocracia de notáveis frustrados, não podem deixar de ser modelos de contrapoder, de espírito crítico, de homens livres, livres da finança, dos esquemas institucionais de subsídios, da tentação da imagem e da própria partidocracia.

Toda a dissolução das tais coisas que, em comum, se amam, como a pátria, a liberdade e a democracia, dessas ideias pelas quais vale a pena morrer, contribui para que a coisa pública se depublicize e se corrompa. E quando falha a res publica, tanto se quebra a communio como se rompe o consensus juris. Isto é, não há democracia se não se consolidar uma comunidade que gere comunhão, e não se aparelhar um Estado de Direito norteado pelo valor da justiça, entendida como aquela dinâmica igualdade de oportunidades que promove a meritocracia de tratar desigualmente o desigual, através de uma concorrencial competição pelo mérito que não ceda aos atavismos do privilégio e da isenção.

As alturas do poder criam um jardim das delícias democráticas onde a demagogia dos discursos de quem, por dominar o poder pensa que conquistou a palavra, faz esquecer que a burocracia do aparelho de poder pode controlar disciplinadamente o poder espiritual.

Com efeito, também entre nós se gerou a intelligentzia, essa casta de intelectuels da republique des lettres, essa espécie de ordem monástica dos nouveaux clercs, desses que se transformam numa seita e procuram monopolizar a cultura, quando não lhe atribuem até um Ministério com esse nome, e que dotada do complexo de superioridade dos vanguardistas, se assume como uma colectividade de ideologia, não económica ou profissional.

Há sempre o risco de surgir uma nova classe dos pretensos proprietários do capital cultural, desse poder intelectual, hábil na renda de bilros ideológica, onde há mais reprodutores, vulgarizadores e distribuidores de símbolos, do que criadores. Porque se despreza o conceito etimológico de inteligência, o estado de espírito daquele que sabe intus mais legere, isto é, ler por dentro, penetrar dentro das próprias coisas, captando, nessa intimidade, a essência das mesmas, através de um saber-compreender, olhando que sempre foi além do saber-fazer desses doentios consumidores do ópio dos intelectuais, porque procura olhar o mesmo mundo do ponto de vista do outro.

Importa, pois, ultrapassar a instrução e a hiper-informação dos que não sabem navegar no oceano do conhecimento e retomar a senda da verdadeira educação, aquela que vem de educere, extrair, tirar de dentro, e por dentro, das coisas, onde as coisas realmente são, a necessidade de crescermos para cima e para dentro, conforme as perspectivas do livre e solidário desenvolvimento humano.

Julgamos que importa tratar do passado como passado presente, para que possamos continuar a ter saudades de futuro, sem as ilusões vanguardistas e esoteristas do futuro presente, mas com o ensimesmamento daquele que ousa especular, ao procurar conhecer-se a si mesmo, colectivamente, olhando no espelho (speculum) da sua mente colectiva e procurando assim espiar ou esquadrinhar (speculari), nesse conhecer as causas e os efeitos, mas através daquela via kantiana de um conhecimento cujo objecto não pode ser experimentado num laboratório, mas apenas pela imaginação da sociologia histórica.

Só assim podemos reaver a esperança, enquanto tendência para um bem futuro e possível, embora incerto, para continuarmos a seguir São Tomás de Aquino, para o desejo desse bem com confiança, de acordo com os ensinamentos de São Paulo, que, à spes, deu o símbolo da âncora, dado que esta permite, a quem ousa navegar, penetrar na eternidade da terra firme".