a Sobre o tempo que passa: Nós inventámos a república, para deixarmos de ter um dono... não vale a pena continuarmos a comer à mesa do orçamento

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.5.07

Nós inventámos a república, para deixarmos de ter um dono... não vale a pena continuarmos a comer à mesa do orçamento

Hoje já não é o dia da Europa, a não ser para os que estão sofrendo as consequências das habituais sessões de croquetes e vinhos finos da recepções de ontem, com muito pessoal das embaixadas colonizadoramente aliadas. Porque ontem foi o dia de queda dos camarários alfacinhas, do anúncio da candidatura de Helena Roseta, da manifestação da disponibilidade de Maria José Nogueira Pinto para o mesmo efeito e de ouvirmos o número dois de Carmona Rodrigues dizer que tudo foi por culpa da forma de estar de José Sá Fernandes. Apenas fiquei satisfeito do investimento que fiz ao apoiá-lo, coisa que agora não repetirei, porque ele já é mais um partidocrata.

Hoje continuará o grande espectáculo de análise da investigação policial lusitana sobre o desaparecimento de uma criança britânica, onde qualquer leigo tem opiniões sobre o confronto entre o sistema jurídico anglo-americano e o sistema jurídico continental-europeu. Apenas me lembro que, há uns anos, a nossa pacata GNR apanhou, num jardim algarvio, um ilustre mafioso desaparecido que apanhava sol, pensando que as nossas polícias integravam a caricatura que certos parvos da Europa polida e civilizada costuma fazer.

Por isso fui reler a entrevista que Henrique Neto deu ao CM: ser deputado não correspondia às minhas características: ser frontal. Dizer, sem preocupações, aquilo que penso. Ser livre... Tal como ser de um partido implica o cinzentismo, quando relata o que Guterres dizia dos membros do partido que escreviam nos jornais contra o partido, qualificados da seguinte maneira: o que eles têm é inveja de nós estarmos aqui”. Eu respondi-lhe que, a partir do momento que os governos deixam de ouvir, perdem legitimidade. Acabei por escrever uma carta. Lendo-a hoje, dá-me vontade de rir. Tudo o que lhe aconteceu está lá escrito: o governo não governou bem.

Acrescenta sobre o segundo guterrismo, o actual socratismo: é um governo feito de enganos. Os portugueses estão a favor do governo, dizem que o Eng. Sócrates governa bem, mas é pura ficção. O governo é muito hábil em fazer passar objectivos consensuais: umas vezes não tem levado à frente esses objectivos, porque não quer, e outras vezes, por- que não sabe. Tem muitas manobras de diversão. É muito difícil saber se o Eng. Sócrates quer ou não uma coisa. Lança até ideias que não quer, com o intuito de serem queimadas. Também a mim o que me faz impressão é o facto de uma televisão privada ser presidida por um espanhol. A Prisa entrou a papo-seco. E também eu quero fazer aquilo que os portugueses andam a fazer há oito séculos. Resistir.

Por outras palavras, quando as instituições transformam os homens livres em dissidentes, passíveis de saneamento por heresia e não se apercebem que a lealdade básica não se confunde com seguidismo face à voz do dono, podemos dizer que as ditas, um quarto de hora antes de morrerem, ainda estão vivas, especialmente quando domina a cobardia abstencionista dos batedores de palmas, a entoarem a ladaínha do sim, chefe ou do yes, minister. O micro-autoritarismo já não tem pides que assassinem o chefe da oposição, nem pode, por resolução do conselho de ministros, afastar funcionários incómodos, mas obtém os mesmos fins de forma tortuosamente teológica, de acordo com o método daquela bissectriz que vai comprando os neutros, ao mesmo tempo que emite decretinas medidas, pelas quais, através de uma forjada arquitectura de uma nova lei orgânica, afasta todos os críticos sem os nominar.

Por exemplo, na minha universidade, um ilustre director, pelos acasos da providência dos seus altos desígnios, quando confrontado com as críticas dos seus colegas da mesma categoria, obtida por concurso público, resolveu a matéria da forma mais hipócrita: criou uma nova estrutura onde desapareceram as unidades que poderiam ser ocupadas pelos opositores e criou outra onde só meteu os amigos e os dependentes, invocando uma especialização tecnocrática onde ele é menos especialista do que aqueles que pretende e vai afastar. Só que ele é chefe e monopoliza a gestão dos fundos que, por acaso, são públicos. Também é do partido de Guterres, embora colabore com Alberto João Jardim, e não goste da forma de estar dos Henrique Neto.

Tem tanta razão como a interpretação seminarista que se fazia do cinto da velha bufa, dos feijões verdes, onde o "S" de metal que obrigavam os "lusitos" a usar queria dizer, segundo a lei e os regulamentos "Serviço, Sacríficio", embora todos percebessem que era gravação a ferro e fogo daquele servilismo que se identificava com a obediência ao chefe. Por outras palavras, o nosso Estado de Direito está a cair naquela ratoeira do governo dos espertos que transformou o slogan liberal de António Feliciano de Castilho, do manda quem pode, obedece quem deve, numa forma salazarista de obediencialismo.

Por isso, é natural que o lema das aldeias comunitárias segundo o qual o que é comum, não é de nenhum se transforme no seu exacto contrário, quando passamos a considerar que o Estado já não é a comunidade ou república, mas antes o c'est lui do aparelho de poder. Por mim, preferia que a democracia não mantivesse os velhos hábitos do absolutismo: o Estado não é o c'est moi, da voz do dono, o Estado somos nós todos. Porque, como já dizia Plínio, quando se dirigia a Trajano, nós inventámos a república para deixarmos de ter um dono.

Os aparelhistas que nos dominam podem ser detectados na forma de estar confirmada pelo relatório da Caixa Geral de Aposentações de 2006, a que o CM teve acesso, revela que as pensões de valor superior a quatro mil euros têm um peso cada vez maior nos gastos com as reformas dos beneficiários: em 2006, numa despesa total de 6,1 mil milhões de euros com as reformas de 393 663 pensionistas, os custos com as 3454 ‘pensões douradas’ oscilaram entre um mínimo de 13,8 milhões e um máximo de cerca de 19,6 milhões de euros.

Porque a tendência dos primeiros cinco meses deste ano indica que o número de pensionistas com as reformas mais altas continuará a aumentar em 2007: entre Janeiro e Maio deste ano registaram-se mais 165 pensões milionárias. Só em Maio 38 beneficiários da CGA aposentaram-se com mais de quatro mil euros. Desse total, seis, todos magistrados, reformaram-se com pensões entre 5034 euros e 5834 euros.

Nada de novo. Na véspera de eleições (em 10 de Maio de 1919), surgiu o mais gordo diário oficial da história portuguesa, onde se publicaram 30 suplementos, que, segundo os críticos, criaram cerca de 17 mil novos empregos públicos. Todos nomeados por conveniência do serviço público, sem o visto do Conselho Superior de Finanças. Logo, em 1930, contabilizavam-se mais de 17 000 funcionários do que em 1911, enquanto as forças armadas, nesse período, também aumentaram em cerca de 16 000 efectivos. Assim triunfava a empregomania semeada pelo devorismo de Rodrigo da Fonseca, só que então ela se democratizava, alargando-se às classes médias e a núcleos da pequena burguesia. E como não havia moralidade, todos continuam a querer comer à mesa do orçamento.

A maleita continua, à direita, à esquerda e ao centro, em nome do 24 de Agosto, do 5 de Outubro, do 28 de Maio ou do 25 de Abril. Todos os revolucionários, quando se transformam em pós-revolucionários, são sempre bonzos, à procura de reformas, aposentações e acumulação das ditas, com chefes em aposentadoria, mas com dispensa oficial, para continuarem no activo, segundo a moral do sapateiro de Braga... Até ministros dos anciens régimes se convertem em gurus dos novos, a partir do momento em que resoluções do conselho de ministros lhes inventam um vencimento suplementar, para poderem acumular com acumulações de curadorias fundacionais, aposentações deputáveis e directorias-gerais de instituições,onde só ele é orçamentalmente vencimentável. Somos todos iguais, mas há alguns mais legalmente iguais, nesta permanecente animal farm...

Aliás, os directamente visados nesta descrição não caricatural, depois de lerem este postal, coisa que fazem quotidianamente, ficam todos satisfeitos de a coisa não aparecer num jornal, pensando que assim se contêm os danos. Um deles até costuma telefonar para os meios de comunicação onde colaboro como publicista esporádico, informando-os da minha forma de estar, passível de internamento e saneamento, e insinuando a minha pertença a hidras conspiratórias, que vão do opus ao aparelho cripto dos comunas, com passagem por todas as restantes notas de pé de página da teoria da conspiração, conforme o elenco sabiamente emitido pela ilustre frente antilaica e antiantiateus das ACTIC que os apoiam, como se os neomaquivélicos de trazer por casa pudessem ser defensores da liberdade, mesmo quando se conjugam com estalinistas de sempre, reciclados em neo-espionite e fatos de alfaites finos.