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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

15.5.07

Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo...

Hoje não vou comentar as candidaturas autárquicas lisbonenses, entre António Costa e Helena Roseta, porque o meu amigo Fernando Seara desistiu, como outrora o fez relativamente à presidência do Glorioso. Espero que não tenha sido por causa dos envenenados elogios de Marcelo Rebelo de Sousa, no domingo, onde o ilustre presidente do conselho científico da FDL disse que o presidente sintrense seria apoiado pelos santanistas, a fim de fazer saltar da toca Santana, ele próprio, que, no comentário radiofónico da manhã seguinte, logo atacou veementemente a hipótese, nestes jogos de bastidores que nos vão desgastando pelo mau uso e prostituindo pelo abuso.

Prefiro viajar pelos meandros do permanecente micro-autoritarismo subestatal, citando parcelas de um "mail" que acabei de receber: este País parece ter ensandecido... fui colocado num depósito onde está uma série de pessoas absolutamente desactivadas... que esperam desactivados pela reforma. Durante um ano e meio, nunca me deram uma única tarefa. Nem uma única. Chamam-me ..., mas nunca recebi qualquer despacho, nem me foi solicitada qualquer tarefa.

Ontem recebi a minha nota de serviço referente ao ano de ... Ora tudo isto é um embuste sem limites, nunca ninguém me definiu objectivos, e nunca ninguém me mandou fazer fosse o que fosse. A minha classificação de serviço assenta em verborreia que mais não é do que um chorrilho de mentiras... Inventaram tudo. Para aplicar o sistema de avaliação chamado SIADAP (inventado pelo ...) estão a inventar. Apesar de a minha classificação ser inócua ... arrepia-me pensar que as pessoas que estão a ser dispensadas ... tem-no sido apenas com base nessa classificação. Os jornalistas que enfeitam os jornais com letras garrafais que anunciam rigor e novas regras que visam distinguir pelo mérito, estão a ser enganados. Não é nada disso. Pior do que tudo, vejo os funcionários mais amedrontados do que nunca... vou lutar contra esta absurdidade. Esta noite mal consegui dormir na ânsia de me dirigir ao meu sindicato, e admito ir para os jornais denunciar a barbaridade que se vive em certas gaiolas da função pública. Para começar vou devolver a minha classificação ao ..., e explicar-lhe que tudo o que escreveu na minha classificação é mentira. Absoluta mentira! Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo.

A história que aqui transcrevo, passada num organismo da administração directa do Estado, podia ser contada, com outros recortes, mas com o mesmo decadentismo, numa qualquer entidade dependente do decretino ministerial, assim confirmando como vivemos em plena ditadura da incompetência. O ambiente de crise leva à destruição do nobre poder político, entendido, não como uma coisa que se conquista, mas antes como uma relação entre a chamada sociedade civil e o aparelho de poder.

Estamos em plena loucura típica de um tempo de entrada na simples patrimonialização do poder, onde um qualquer indivíduo, social ou economicamente enfraquecido, para sobreviver, trata de pedir protecção a um qualquer outro que julga social e economicamente mais forte na barganha negocial. Primeiro, começa com a simples cunha, a parte soft do feudalismo. Depois, vai alargando o absuso e pode atingir a corrupção, ou compra do poder, a parte mais hard do mesmo fenómeno da antipolítica. E entre a cunha e a compra do poder, vive-se neste ambiente de relações privadas que afectam o próprio financiamento partidário, onde o importante não é ser ministro, mas tê-lo sido.

Não tarda que surjam as sereias do moralismo populista, enquanto vão proliferando os episódios ditos da judicialização da política e as ameaças do Estado de Juízes, simples manobras de diversão que nos embaciam as lentes analíticas. A chegada a Lisboa de algumas vassouradas das investigações brasileiras sobre os furacões, os mensalões ou o sanguessugas, apenas revelam como estamos hipócritas demais, entalados entre Deus e o Diabo e não assumindo que, na prática a teoria é outra, dado que o homem tem os olhos nas estrelas da música celestial, mas anda com os pés no lodo daquele dia a dia onde o normal é haver anormais.

E, por hoje, mais não digo. Não vou contar as pequenas histórias da degradação universitária, neste ambiente de crepúsculo, quando as escolas são transformadas ao ritmo da partidocracia e da direcção-geral dos adidos e excedentes, perdendo a autonomia institucional a partir do momento em que começam a destruir a autonomia das pessoas que lhes davam vida.

Basta notar como já ninguém diz o que efectivamente pensa e que a palavra dada se não respeita, em proveito das orgias do poder pelo poder, onde quem parece ter razão no curto prazo, logo a perde no dia seguinte, quando ficamos todos a saber das chantagens e das próprias orgias, algumas delas registadas em video, ou tesemunhadas presencialmente por alguns intervenientes. O pior é que a longo prazo estamos todos mortos.
Tudo isto é kafkiano e o País parece estar a dormir, ou pior, a encolher-se de medo.