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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

7.10.07

Quando ainda havia uma rua da sofia, antes do pátio da inquisição, no sopé da colina da universidade de livro único...




Lá fui até à minha pequena pátria, em dia de Outono, pleno de sol, ter o prazer de ouvir mestres como Giacomo Marramao e Gianni Vattimo, neste intervalo de filosofia que me fez procurar o eterno, sem ter que, hoje, comentar as entrevistas de João Cravinho e Catalina Pestana, que fui lendo na viagem. No "bunker" do auditório da Reitoria, incrustado no edifício estilo veiga simão, falou-se de sociedade pós-secular.


Porque as religiões voltaram a assumir um papel importante no espaço público, contra a herança da "secularité" do modelo vestefálico, conforme as teses propagadas recentemente por Peter Berger e Habermas. E tive a honra de os ter como auditores da minha comunicação, onde tentei viajar por memórias futuras, da velha sociedade sem Estado ao presente Estado sem sociedade e sem política.


Mas para responder ao desafio de tais mestres italianos, decidi não ler o papel onde trazia o meu trabalho de casa e passei a falar em oralidade viva, dito improviso assente em tópicos, neste que foi mais um exercício quodlibético. Porque ambos os professores tinham invocado a necessidade de restaurarmos o espaço da "civitas" medieval e da "res publica romana", utilizei essas metáforas para recordar o meu regresso à cidade natal, nessa viagem que, enquanto menino e moço, todos os dias fazia, da minha casa na Rua Fora de Portas, até à escola no Arco de Almedina, ao longo da Rua da Sofia, antes de a universidade se instalar no cima da colina, dominando a cidade dos futricas. Até acrescentei que no fim da rua, estava o Pátio da Inquisição, entre a caixa geral de depósitos e a esquadra da polícia...




Recordei a minha pequena pátria moçárabe dos campos do Mondego, habitada pelos "colimbries", os soldados que ajudaram os reis leoneses e os "duces" portucalenses na reconquista. E até disse que era neto de moleiiros da Ribeira de Cernache, que fica exactamente a meio da linha que vai da colina de Aeminum a Conimbriga, mesmo no sopé de um dos acampamentos romanos que restam em Portugal. Aquele que o modernismo de Bissaya Barreto destruiu com máquinas de terraplanagem para construir o campo de aviação do Picoto...
Insisti nas Cortes de 1385, onde um bolonhês, João das Regras, que os transalpinos registaram como João Hispano, nos deu constituição consensualista, na primeira das revoluções pós-feudais da Europa, em nome do QOT (o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido) e do senhorio natural contra o senhorio de honra do Pacto de Salvaterra.




Notei como, a partir desta data, se conformou a república dos portugueses, nesse reino de coroa aberta, onde o poder de sua alteza ainda estava no interior do corpo político, estruturado antes de Maquiavel inventar o Estado (1531), ao mesmo tempo que acabava com a teologia como ciência aruitectónica e separava a política, a religião, o direito e a moral, lançando as bases da Razão de Estado. E acrescentei que tudo aconteceu antes de Bodin, em 1576, ter estruturado o conceito de soberania, de acordo com os interesses nacionais franceses, que queriam destruir os focos da elipse da "res publica christiana", o Imperador (os Habsburgos) e o Papa.




Depois, com Vestefália, oito anos depois de restaurarmos a independência, chegou uma soberania, não apenas externa, mas também interna, com essa falsa secularidade que estabeleceu o "cujus regio, ejus religio", isto é, as religiões oficiais postas aos serviço do "Leviathan" do soberanismo absolutista, onde o vértice do Estado tinha numa mão a espada e na outra o báculo.




Coimbra, onde tinham ensinado Suárez e Velasco Gouveia, os nossos grandes professores da democracia moderna, passou a ser presa fácil do decretino da universidade estadual do livro único e a sofia soi usurpada, quando saiu da cidade de todos os dias e ocupou, como fortaleza, o cimo da colina. A universidade deixou de ser uni-diversidade e culminou simbolicamente em pleno salazarismo com a construção dos actuais caixotes modernistas assentes na terraplanagem de uma cidade universitária. Isto é, passou a ser presa fácil de um qualquer ministerialismo decretino que tanto transformou a colina em universidade única, como a tornou dependente da reforma de um qualquer Mariano Gago, onde Bolonha se pode transformar em anti-Bolonha.




Até porque a saída da universidade do ambiente da cidade e da Rua da Sofia fez com que se criasse uma fronteira artificial entre a cidade dos futricas e a cidade dos doutores e dos estudantes, entre aquilo que sempre foi o povo e aquilo que não devia ser uma universidade. Apenas me foi dado concluir que precisamos de tempo, porque, apesar de tudo, a realidade do encontro de civilizações universais, cinquenta anos depois do Sputnik, tem andado mais rapidamente do que as teorias, as ideias-feitas e as ideologias. Porque a moral dos homens concretos ultrapassou os caixilhos teóricos, incluindo os pós-modernos. O mundo talvez seja melhor do que aqueles que os nossos instrumentos de análise conseguem capturar em teses universitárias. Felizmente, a moral tem andado à frente do direito e da política, às vezes, contra a moral e a política.



Apenas li o seguinte: "Ainda hoje continuamos a procurar a salvação do mundo, para utilizarmos o título de uma tragicomédia de José Régio, de 1954. Ainda hoje, nos dividimos entre o partido democrático, para quem só os princípios da liberdade são a garantia do progresso, o aristocrático, defensor da qualidade dos governantes contra a inconsciência e a mediocridade das maiorias, e o extremista, acreditando em regimes de autoridade baseados as aquisições da Ciência e da Técnica.


E todos apenas vão concordando naquela metodologia que os leva a estar em desacordo, como Lenine a invocar Ford e Taylor, o futurismo fascista a repetir as imprecações do surrealismo anarcocomunista ou Georges Sorel a servir de inspirador para todos os totalitarismos dos anos vinte.

Resta-nos a esperança de um rei Pedro da Traslândia que proclame: venho nu, cheio de boa fé e de boa vontade. Perdi toda a ciência que tinha..., que julgava ter, e que nem era ciência nem era sabedoria. Agora não sei quase nada. Vou tentar aprender a cada instante com as realidades interiores e exteriores.


Um rei Pedro, aprendendo com aquele Profeta que volta a falar num novo Evangelho sem palavras, ideias e doutrinas: Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas".