Imagem picada aquiApetecia começar o meu postal de hoje com o que já aqui emiti, retomando texto escrito há algumas décadas. Porque sei e valia mais não saber, valia mais esquecer-me de quem sou e, renegando os princípios por que me querem prender, entregar-me às doces polícias do pensamento que sem proibir nos querem silenciar.Valia mais censurar-me, arrepender-me, rasgar meus versos, não acreditar. Isto é, ter o prudente medo desse bom chefe de família que tem de ganhar a vida. Ter, em suma, a cobardia de não ser e parecer sempre do lado que convém. Para quê defrontar o vento novo e arriscar causas perdidas, quando posso aplaudir o vencedor? Ser definitivamente da casta dos moderados, desses que tendo dito sim ao não, aparentando não dizer nada, podem, depois, muito convenientemente, demonstrar que não disseram o que calaram. Enfim: sobreviver, deixar a política para os políticos e a pátria para os homens de sucesso.
Prefiro emitir a entrevista que concedi a Ana Clara, do semanário "O Diabo".
— Em 1 de Dezembro de 1640 foi declarada e restabelecida a independência de Portugal face a 60 anos de domínio espanhol. Considera que podemos continuar a aspirar pela sua continuidade ou estará a nossa independência ameaçada?
Portugal nunca perdeu a independência durante os 60 anos de reinado dos Filipes, onde os Habsburgos, descendentes de Carlos V, legalmente eleitos reis de Portugal, por deliberação das Cortes de Tomar, nos integraram num império europeu que também abrangia parte fundamental daquilo que é hoje a União Europeia, incluindo Bruxelas. Em 1640 apenas houve uma rescisão por justa causa e a criação de um movimento que nos fez eleger um novo rei, num processo paralelo ao que ocorreu naquilo a que hoje chamamos Holanda. A nossa independência estará sempre ameaçada se a não fizermos radicar naquilo que Alexandre Herculano qualificava como a vontade de sermos independentes.
Isto é, a independência deriva mais de factores internos que de ameaças externas. Seria estúpido que continuássemos a antiquada perspectiva que coloca o independentismo português como mera consequência da ameaça espanholista, fazendo revisionismos históricos. A Espanha voltou a ser uma pluralidade de Espanhas e a melhor forma de as compreendermos está em reconhecermos que se está a dar uma espécie de portugalização do Estado Espanhol, como antevia Miguel de Unamuno, dado que se estão a libertar as energias das nações proibidas pelo absolutismo de Madrid, marcado pela política de Olivares.
Eu que me considero um europeísta, adepto do divisão dos imperialismos frustrados que nos geraram a Europa da hierarquia das potências, para que se possa atingir a unidade na diversidade da Europa das libertações nacionais, não posso deixar de ser um adepto da união ibérica, sob a forma de uma aliança peninsular que passe por Madrid, Barcelona, Bilbau, Sevilha, Santiago de Castela e Valência, embora sem vontade de destruir séculos de Estado Espanhol. E até acredito que no espaço europeu é possível semear essa velha ideia através da Espanha juancarlista, plural e autonómica.
— A data histórica que assinala a restauração da independência tem sido dignamente recordada? Que significado tem ainda esta data para os portugueses?
Julgo que não. Seria interessante que, num próximo dia 1 de Dezembro, a pudessemos comemorar reeditando os tratados dos grandes juristas da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, mas demonstrando como esses textos justificadores da revogação do título de rei de Portugal à casa de Áustria se basearam em autores espanhóis da neo-escolástica, como Francisco de Vitória e Francisco Suárez, criadores de uma teoria hispânica da democracia e das liberdades nacionais.
Porque o 1º de Dezembro de 1640 foi a base da actual perspectiva moderna, precursora da Regeneração de 1820. Sem 1640 não teríamos reinventado a identidade nacional, no contexto da Europa dos Estados Modernos, consagrada em Vestefália, não passando hoje de mera saudade sem presente, perdidos nas brumas de uma memória de autonomia nacional.
Contudo, se perspectivarmos o Portugal universal, poderíamos dizer, como ensinava Agostinho da Silva, que 1640 teve outra mais importante consequência: permitiu a criação do Brasil, permitiu que as principais energias do independentismo lusíada assentassem no lado de baixo do Equador e que se preparasse a mudança da capital do reino para o Rio de Janeiro, conforme uma estratégia nacional que estava amplamente delineada por D. Pedro II, bem antes de D. João VI. E foi do Brasil que saiu Salvador Correia de Sá para fundar outra cidade de São Paulo, a de Luanda, assim se dando corpo ao novo triângulo estratégico atlântico do oceano lusíada, entre o Rio, Luanda e Lisboa.
— Na sua opinião de e para que serve hoje a invocação da soberania nacional?
Para muitos continuarem a não perceber que a independência nacional não se identifica com os conceitos de Estado e de Soberania. O primeiro apenas surgiu em 1531, com Maquiavel. O segundo em 1576, com Bodin. O nosso D. João II e o respectivo sucessor, a quem o primeiro deu a armilar, preferiam os velhos mas não antiquados conceitos de república e de autonomia nacional, conforme foram consagrados na primeira constituição portuguesa, aprovada nas Cortes de Coimbra de 1385.
E estas ideias políticas sempre conceberam as comunidades políticas como repúblicas que se poderiam integrar numa república maior. Na altura era a bela "respublica christiana" que permitiu a "cosmopolis" do Euromundo, hoje uma Nação-Estado é algo que pode e deve integrar-se num outro grande espaço, que pode ser a Europa e a própria república universal, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e a consequente libertação nacional, assim a Europa e o Mundo possam ser nações de nações e democracias de democracias.
Tem sido esta a reivindicação dos tradicionais humanismos europeus, desde o humanismo cristão ao humanismo laico, incluindo o maçónico, com a sua república de irmãos, como homens livres ou homens de boa vontade. Por mim, não vejo grande diferença entre Kant e João Paulo II quanto aos objectivos essenciais da vontade de independência nacional e de criação de uma república universal. Todo o nosso plural humanismo subscreve as teses de São Paulo, Marco Aurélio e Erasmo que se conjugaram em 1640.
- Depois da independência do domínio espanhol, só conseguida em 1640, o que é que foi mais importante para a História: a revolta ou a efectiva independência?
O chamado domínio espanhol é um conceito equívoco, como já o procurei demonstrar. Tem a ver com preconceitos e fantasmas que até esquecem que o nosso Filipe I, o Filipe II de Espanha, era mais português do espanhol, filho de uma princesa lusitana e de um belga, Carlos V. E talvez seja necessário recordar que quando chegaram a Madrid notícias do ocorrido em Lisboa no 1º de Dezembro, os madrilenos até ficaram satisfeitos e aprenderam, a partir de então, a ter que admitir, pelo menos, dois Estado na península.
Basta recordar que entre 1640 e 1668 vivemos em estado de guerra com um vizinho que era uma das principais potências militares da Europa e que não perdemos a guerra. Isto é, os vizinhos perderam a vontade de se mobilizarem para esmagarem a nossa vontade.
E não consta que tenham feito expedições militares para esmagarem a América Portuguesa que era, já na altura, a principal reserva das saudades de futuro do Portugal Universal. Isto é, 1640 revela que houve uma estratégia nacional de independência, misturando a massa crítica (população, mais território, mais economia, mais força militar) com a vontade de sermos independentes, o tal factor intangível que pode fazer das fraquezas, forças e que evita que as potencialidades se tornem vulnerabilidades. Se chamarmos a isso revolta com pensamento, óptimo?
— Temos perdido ou não elementos importantes da soberania nacional?
Já disse que não sou soberanista nem estadualista. A soberania pode ser entendida conforme a perspectiva de um teórico bodinista desse século XVII, um tal Miguel de Vasconcelos, que era simultaneamente soberanista e filipista, adepto de Olivares. Tal como hoje pode haver soberanistas que coloquem essa abstracção em Bruxelas, no Vaticano ou em Washington. Por mim, que sou federalista e nacionalista, prefiro a soberania divisível, para cima e para baixo. Isto é, tanto admito a transferência de parcelas dessa soberania para entidades maiores do que o Estado (p.e. para o projecto europeu ou para um Tribunal Penal Internacional), como para entidades infra-estatais (p.e. para regiões políticas).
O conceito clássico de república não pode ter medo de repúblicas maiores e menores e muito menos de coisas políticas que se passam entre os povos e as sociedades civis, naquilo a que chamamos relações transnacionais, ou trans-estaduais, assentes na autonomia das sociedades civis. Continuo mais nacionalista do que soberanista e mais federalista do que estadualista, especialmente quando não admito Estados que proíbam nações ou até Estados que construam nações. Prefiro nações que dividam Estados, para permitirem repúblicas que resultem de nações, desde que possam integrar-se noutras repúblicas maiores. Como dizia Fernando Pessoa, cada nação é sempre um ponto de passagem para a super-nação futura.
— Há quem diga que a Espanha está a conquistas pela via económica o que não conseguiu pela via das armas. Concorda?
Seria melhor descodificarmos cada um desses investimentos estrangeiros, dando o nome real às coisas conquistadoras e percebendo que o Estado não é o mercado. Num mundo de geofinança e de geo-economia, os capitais não têm pátria. Apenas reparo que muito do que dizem capital espanhol é capital das multinacionais e transnacionais que puseram a sede em Madrid, por falta de estímulos das leis e dos burocratas portugueses. Até noto que alguns dos agentes de certas promessas lusitanas de fusão vêm de capitais oriundos da Catalunha.
Acresce que face a problemas internos do Estado espanhol, muitas das vontades madrilenas de investimento são apenas consequência da autonomia financeira catalã e basca, gerando-se um excedente que desliza para ocidente, dado que a boa moeda costuma expulsar a má moeda ou, dito de outra forma, por falta de bons capitalistas portugueses, muitos destes organizam campanhas anti-espanholas, para disfarçarem a respectiva falta de qualidade face aos congéneres ditos "hermanos".
Como sou liberal, julgo que não devemos gastar energias nacionais com proteccionismos assentes em fantasmas e preconceitos. O meu nacionalismo é político e nunca económico, até porque os problemas económicos se resolvem apenas com medidas económicas, embora não apenas com medidas económicas. Precisam também de estratégia nacional, assente na autonomia das repúblicas, isto é, num poder político mobilizador e numa governação que saiba gerir dependências e navegar na interdependência, com mais política e mais sociedade.