a Sobre o tempo que passa: novembro 2007

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.11.07

Esta coisa de ser vertebrado atrapalha muito num mundo de esqueletos no armário e consciências reduzidas a escória...


Por estas tascas e cafés de bairro, por onde passava o Eduardo Prado Coelho, restam dois ou três peregrinos da intelectualidade castífera e capitaleira, com que, de vez em quando, deparo na solidão das mesas, todos lendo pausadamente o jornal "Público", todos carregando o último livrinho encomendado a Londres ou a Paris, todos olhando o povo que vai aos balcões tomar a biquinha como uma multidão alienígena. Se alguns foram meus conhecidos dos bancos e bares das faculdades, com todos esses fazedores de vanguardas progressistas e reaccionárias, não me apetece conversar nem sequer saudar, até porque não estou minimamente interessado em aceder ao respectivo sindicato das citações mútuas e dos subsídios em circuito fechado, nomeadamente nos júris clandestinos das selecções avaliadoras.


Não faltam sequer os ilustres angariadores de patrocínios para seminários, "workshops" e conferências que, de uísque em punho, vão engenheirando a respectiva caça ao favor, trocando telemóveis da fauna bancária e empresarial que ainda acredita que assim se faz o marketing e a política de imagem. E tal como no anterior sindicato das citações mútuas são os ditos que emitem adjectivações sobre peritos que podem mobilizar para a procissão, sobretudo os que não requerem "cachet", mas apenas prendinhas da loja dos trezentos. Por mim, prefiro gerir meus pareceres sem cedência a esse grupo de amigos que cordialmente se odeiam, apoiando os que têm mérito, apenas em nome da justiça.


Por esta e por outras é que me apetece referir um "mail" que acabei de receber de mais um mal avaliado pela clandestinidade dos critérios do estadão: É bem feito para mim que, pela primeira vez, troquei o punho ao alto pela mão estendida! Esta coisa de ser vertebrado atrapalha muito num mundo de esqueletos no armário e consciências reduzidas a escória. Queria estar revoltado, mas estou apenas triste. É bem feito para mim que nunca torci e agora quebrei! ...É bem feito para mim que já me via no cume de uma meritocracia! "Volta lá para baixo e carrega o calhau montanha acima, Sísifo, que essa é a tua sina"!!
De facto, eu bem tinha referido ao dito que a única via para a oleosidade estava em duas ou três cartas de recomendação da partidocracia, do mediático e da consultadoria, desses a quem a engenharia carreirística dos seleccionadores supõe que, um dia, precisarão de meter cunha. Porque o mesmo "item" criterioso sempre varia conforme as circunstâncias, ou os ódios de estimação, onde a vingança se costuma servir, quando não é previamente levantado o critério de suspeição. Por mim, também volto a Sá de Miranda:
Homem de um só parecer,
Dum só rosto, uma só fé,
Dantes quebrar que torcer,
Ele tudo pode ser,
Mas de corte homem não é.
...
Tudo seu remédio tem
E que assim bem o sabeis,
E ao remédio também;
Querei-los conhecer bem,
No fruto os conhecereis.

Obras, que palavras não:
Porém, senhor, somos muitos,
E entre tanta multidão
Tresmalham-se-vos os frutos,
Que não sabeis cujos são.

Um que por outro se vende,
Lança a pedra, e a mão esconde;
O dano longe se estende;
Aquele a quem dói e entende,
Com só suspiros responde.

A vida desaparece,
E entretanto geme e jaz
O que caiu: e acontece,
Que dum mal, que se lhe faz,
Outro mor se lhe recresce.

Pena e galardão igual
O mundo a direito tem,
A uma regra geral;
Que a pena se deve ao mal,
E o galardão ao bem.
...
Sempre foi, sempre há de ser,
Que onde uma só parte fala,
Que a outra haja de gemer:
Se um jogo a todos iguala,
As leis que devem fazer?
Pensamentos nunca cheios,
Não têm fundo aqueles sacos;
Inda mal, porque têm meios
Para viver dos mais fracos,
E dos suores alheios.

Que eu vejo nos povoados
Muitos dos salteadores,
Com nome e rosto de honrados?
Andar quentes e forrados
Das peles dos lavradores.

E, senhor, não me creiais
Se as não acham mais finas,
Que as de lobos cervais,
Que arminhos, que zebelinas,
Custam menos, cobrem mais.

Ah senhor! que vos direi
Que acode mais vento às velas;
Nunca se descuide o rei;
Que inda não é feita a lei,
Já lhe são feitas cautelas.

Então tristes das mulheres,
Tristes dos órfãos coitados,
E a pobreza dos misteres,
Quem nem falar são ousados
Diante os mores poderes.

Os quais quem os assim quer,
Quem os negocia assim,
Que fará quando os tiver?
Nossos houveram de ser;
Tomaram-nos para si.

Ora já que as consciências
O tempo as levou consigo,
Venhamos às penitências,
Senhor, se eu vira castigo
Boas são as residências.

...
Todos nós revolveremos,
Os que tanto não podemos,
E aqueles que podem mais.

...

Do vosso nome um grão rei
Neste reino lusitano,
Se pôs esta mesma lei,
Que diz o seu pelicano:
Pola lei, e pola grei.

A única coisa que não passa é o que passa sem cessar, o tempo


A melhor forma de procurarmos a felicidade está em vivermos como pensamos, sem pensarmos como assim vamos vivendo. Isto é, sem conjugarmos utópicos ou ucrónicos amanhãs que afinal não cantam. Porque talvez seja mais fecundante vivermos cada um dos dias que nos restam como se cada um deles fosse o último.


E lá vai crescendo esta minha arca de escritos inúteis, estas palavras que, dia a dia, vou semeando, estas quotidianas peregrinações "ad loca infecta". Tout s'anéantit, tout périt, tout passe : il n'y a que le monde qui reste, il n'y a que le temps qui dure. [Denis Diderot]




Pessoa a pessoa, a sociedade é uma complexa pluralidade de comunitárias pertenças, com muitos vizinhos em sucessivos círculos dialécticos. Aliás, dialogar é pôr em comunicação o logos, o discurso, enquanto sinónimo de razão. Le temps est le rivage de l'esprit ; tout passe devant lui, et nous croyons que c'est lui qui passe [Rivarol]

É preciso descobrir que é o "outro" que nos faz "eu". É o "nós" que nos permite descobrir que é por dentro de cada um que as coisas realmente são. Que só dentro de cada um, no situado trasncendente, há o dever-ser que é. Le temps est une invention du mouvement. Celui qui ne bouge pas ne voit pas le temps passer [Amélie Nothomb].




O tempo é espera, esperança, esfera. A tal espera que nos dá esperança, a eternidade que nos permite aceder a esse armilar a que chamamos cosmos e que todos os dias temos de imitar, para crescermos por dentro. L'espace change, l'univers se dilate, et la seule chose qui ne passe pas, c'est ce qui passe sans cesse, le temps [Jean d'Ormesson]

29.11.07

Europa, Sistema Eleitoral e Greve: Faz falta ouvir a malta


Estranhei, ontem e hoje, certos "mails" e mensagens que me davam em directo na RTP2, ontem, e na RTÁfrica e na RTPInternacional, hoje, quando eu continuo em quarentena. Depressa me foi dado concluir que se tratou da transmissão do programa "Entre Nós" da Universidade Aberta, gravado na semana passada. Aqui fica o esclarecimento. Em directo, sobre o tema, apenas estarei no Café Europa da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, mas no dia 6 do próximo mês, assim recupere desta viradeira.


Para continuar certos registos, noto que a Rádio Renascença, do passado dia 27, transmitiu o meu comentário à recente manifestação inequívoca do bloco central de interesses, que visa a bipolarização partidária. Também hoje a revista Visão traz comentários meus sobre o ambiente social-sindical, nas vésperas de uma Greve, onde Faz falta ouvir a malta.


Registando a comunicação, aqui deixamos a versão integral do nosso depoimento:


Na sua opinião, como é que o poder político olha para as manifestações dos trabalhadores? Como «honestas» manifestações de descontentamento? Como manipulações de outros partidos? Como provas de vida dos sindicatos? Com desprezo ou com preocupação?

Julgo que o chamado poder político nacional, no contexto da globalização e da integração europeia, já funciona em regime de pilotagem quase automático, dado que a maioria dos factores de poder que consegue gerir já não são intra-nacionais e, mesmo no plano nacional, há uma contabilidade de orçamentações plurianuais e até inter-geracionais. Logo, um qualquer governo sabe, que acima de tudo, tem que gerir dependências ditas internacionais e interdependências globais. As ditas manifestações de trabalhadores não passam de mais uma das pressões que entram na caixa negra daquilo que alguns qualificam como governança sem governo, algo que se contabiliza friamente como mais um incêndio florestal, uma cheia ou uma pequena catástrofe natural. A não ser que dê em tsunami e provoque um curto-circuito no sistema global, coisa pouco previsível, dado que, como Jacques Delors definiu a Europa, ela consegue viver com um terço de excluídos sociais, desde que garanta uma contenção, ou uma pequena melhoria de rendimento dos dois terços do centrão sociológico, dos remediados da classe média baixa que, entre nós, sustentam os partidos do Bloco central que, aliás, também são as secções portuguesas das duas multinacionais partidárias dominantes na Europa (PPE e PSE).

- E os media? Dão notícias das manifestações em França, mas por cá, aquela que juntou 200 mil pessoas no Parque das Nações a propósito da cimeira europeia, pouco mais mereceu que uma nota de rodapé. Será uma questão de credibilidade dos sindicatos portugueses? De discurso?

Quanto a credibilidade, basta assinalar que o líder da CGTP é mais qualificado academicamente que a maioria dos ministros e dos dirigentes das associações patronais, assim revelando que está prestes a patentear-se uma nova forma de questão social, não prevista por Karl Marx e Álvaro Cunhal, a emergência do proletariado intelectual. Com 65 000 licenciados no desemprego, talvez surjam manifestações de massas das pretensas elites, esses novos clérigos donde podem surgir novos fundamentalismos, provocados por certa ditadura da incompetência na organização do trabalho nacional, na vertente da formação e do sistema educativo. Claro que os sindicatos, agarrados à velha questão social do século XIX, no marxismo ortodoxo do cunhalismo cêgêtêpista, ou à questão social-democrata do relatório Beverigde, fundador do Welfare State do pós-guerra, na versão do Engenheiro Proença, ainda não entraram no século XXI.


- O que precisam os sindicatos de fazer para ganhar relevância política em Portugal, como têm em França ou na Alemanha? E para mobilizar os trabalhadores?

A embriaguez discursiva dos aproveitadores das velhas lutas de classes não tem permitido inventariar as vítimas da novíssima questão social, esses novos marginais da globalização, da europeização e do chamado desenvolvimento situacionista, os quais são a efectiva realidade deste pretenso paraíso que, sem qualquer espécie de solidariedade, lança no desemprego essa nova forma de escravatura doce. A sociedade que estamos a gerar, para garantir os pretensos direitos adquiridos de cerca de dois terços de instalados, lança as novas gerações no precário da falta de esperança. E porque os privilegiados têm o monopólio da palavra e do reformismo, continuam a música celestial das reformas do sistema de ensino e da luta pela qualificação, pensando que todos os jovens têm que ter o futuro dos "jotas" da partidocracia, dos sete aos setenta anos, que eles empregam como assessores e adjuntos, através da velha encomendação neofeudal da cunhocracia e do clientelismo, sem vergonha. Basta notarmos como começam a surgir pequenas organizações contra o precariado, esses que sabem o que significam palavras como "call center", estágios, bolsas, recibos verdes e contratos a prazo e que não podem constituir família, ou comprar casa, mas até pagam imposto.

A partidocracia corre o risco de se tornar numa federação entre caciques, locais e regionais, e uma casta de políticos profissionais


Agradeço a Joshua Benoliel a reportagem fotográfica que fez do encontro de AM e PSL. O país são eles
Luísa Mesquita diz que, desde anteontem, deixou de ser comunista, só porque foi formalmente expulsa do PCP, isto é, continua tão comunista que até admite o monopólio da causa pela instituição de que se desligou. António Costa ameaça demitir-se se os deputados municipais do PSD não apoiarem uma proposta que apresentou. Um novo acordo de regime parece concretizar-se, depois de um encontro entre um ex-chefe do governo e um ex-ministro da reforma do estadão, duas excelentes carantonas do regime a que chegámos, naquilo que parece querer retomar o estilo da "ignóbil porcaria".


Isto é, para além do folclore das reivindicações e do apoios, um redivivo rotativismo decidiu entrar em ditadura sistémica, procurando feudalizar, em bipartidarismo, mas sem bipolarização, o monopólio da representação política, numa altura até em que o PS e o PSD são secções nacionais das principais multinacionais partidárias da Europa. Por outras palavras, já não serão precisos mais golpes violentistas de chapelada para que, no futuro, tudo continue como dantes. O anunciado "gentleman's agreement" do vira o disco e toca o mesmo vem, assim, garantir, através da lei, que todas as futuras mudanças eleitorais serão alternâncias sem possibilidade de alternativa. Belém, naturalmente, lavará as mãos como Pilatos, dado que seria feio aplaudir.


Desta forma, os tradicionais "inputs" do sistema político ficam cada vez mais reduzidos ao situacionismo oficial e ao oposicionismo oficioso das duas faces do Bloco Central. As outras forças políticas estão condenadas à residual dimensão de "vozes tribunícias", cada vez mais prenhes de demagogia, para forçarem o "agenda setting". Todos vão deixar o campo do dinamismo interventivo aos grupos de pressão das velhas forças vivas, dado que se desiste da mobilização cívica de uma maioria de indiferentes e de abstencionistas.


Corremos assim o risco de a chamada sociedade civil perder as pontes de ligação à "black box" do sistema político, onde passa a circular, quase impune, uma classe política bipartidocratizada. E esta corre o risco de se tornar numa federação entre caciques, locais e regionais, e uma casta de políticos profissionais, face à qual apenas temos que referendar e plebiscitar as respectivas propostas. Logo, as "eleições", assim rigorosamente vigiadas, poderão ser limitadas às canalizações representativas de um sistema que parece temer a voz directa dos povos.


O ambiente é propício à criação de um "mainstream" que retome os vícios do rotativismo dos monárquicos liberais e da ditadura sistémica do afonsismo durante a Primeira República. Não tardará que o mesmo caia na tentação de condicionar ou punir o dissidente ou de procurar estigmatizar a heresia. Até pode acontecer que os serviços oficiais de espionagem comecem a comunicar, a grupos políticos, a lista dos infiltrados, ou que os partidos dominantes abram uma secção de renovação com blocos de bons desinscritos dos partidos marginais.


Aliás, se consultarmos um desses engenheiros de sistemas políticos e eleitorais, ele dir-nos-á, em termos técnicos, que o bipartidarismo é mau para os pequenos e médios partidos, mas que é bom para o sistema, até porque um parlamento ou uma assembleia municipal que fosse uma fotocópia do país, ou da autarquia, conduziria à ingovernabilidade. Por mim, preferiria que os engenheiros sistémicos, representados por Alberto Martins e Santana Lopes, cedessem lugar aos repúblicos que se preocupam com a crescente falta de participação cívica, para todos tratarmos de reinventar a cidadania. Por isso, continuo do contra!

28.11.07

A noção de Estado Exíguo não depende do tamanho. Depende da vontade.



Saiu mais um relatório do PNUD. Dizia, aqui, em 2005: a Eslovénia já passou à nossa frente. Mas ainda estamos em 27º lugar. Acrescento, hoje, que também já fomos ultrapassados por Chipre. Continuo a notar que muitos, mais de metade dos que estão nos vinte primeiros lugares, fazem parte dos que não escolheram a forma republicana de chefia de Estado.

Aliás, acima de nós, estão cerca de quinze Estados mais pequenos, em termos de dois elementos da massa crítica (população e território). Também mais de uma dezena de entidades políticas que estão acima de nós se integram no bloco que optou por modelos de descentralização, regionalização ou federação.

A maioria absoluta dos que nos superam tem tido governações que não obedecem ao gnosticismo socialista e social-democrata, demonstrando como as chamadas direitas e as chamadas esquerdas, mais liberais e mais conservadoras do que deve ser, incluindo estruturas ainda medievais, em termos constitucionais, têm produzido melhores resultados em termos de desenvolvimento humano, com mais justiça e mais felicidade. De boas intenções discursivas, está o inferno progressista cheio...

Continua a não ser por acaso que a maioria dos últimos colocados na classificação do PNUD passou por experiências de partido único, de autoritarismo e de totalitarismo, muitos dos quais muito à esquerda, muito socialistas e muito estatistas, vivendo as amarguras pós-autoritárias e pós-totalitárias, em cleptocracia, bandocracia e senhores da guerra. Não será a altura de alguns "gurus" mudarem o discurso, pondo os pés na realidade?

Por esta e por outras é que me apetece sorrir com algumas das minhas provocações iberistas, onde tento repetir gestos de Antero de Quental e Pi y Margal, rejeitando os modelos de Francisco Franco e de Olivares, mas correndo o risco de poder ser processado como traidor ao Estado a que chegámos e de não ser do agrado dos agentes do actual Estado Espanhol. Como se fosse tolo não refazermos, em aliança, as várias identidades patrióticas das Espanhas, principalmente olhando para os espaços maiores da União Europeia e do sonho ibero-americano, como me ensinaram um Gilberto Freyre ou um Agostinho da Silva. Por isso, vou reler Francisco Suárez, Fernando Pessoa e Ortega y Gasset, sem rejeitar até a imaginação criadora de José Saramago, com quem concordo nos pressupostos, mas não nas conclusões. Apesar de tudo, o Estado Espanhol, ainda está no 13º lugar da classificação PNUD.


A noção de Estado Exíguo não depende do tamanho. Depende da vontade.

Eu, abrileiro, me confesso...



Um amigo, da velha esquerda liberdadeira, enviou-me a Carta aos Puros de Vinicius de Moraes, escrita na década de cinquenta do século XX. Olhei-me ao espelho da geração abrileira a que pertenço, onde uma certa esquerda lutava contra uma certa tirania, e uma certa direita contra certa tirania, ambas coincidindo no estilo. E tudo na complexidade de um processso que foi de antes e de após o 25 de Abril, mesmo quando os irmãos em disputa alinhavam em campos concorrencialmente adversários.



Hoje, essas tiranias desvaneceram-se e, consequentemente, as esquerdas e as direitas, que viviam no encantamento das causas, ficaram desempregadas, como se tivessem descoberto a Índia, sem direito a visita à Ilha dos Amores. Porque venceram os tais agentes infra-estruturais do poder bancoburocrático e do totalitarismo doce, assente na vontade de servidão. Aliás muitos dos mais ruidosos abrileiros, armados em saudosistas da revolução perdida, não percebem que os respectivos opositores, também abrileiros, mas do anti-PREC, como eu, são tão ou mais anti-tiranias do que eles.

Acresce que qualquer dos filhos e netos desses abrileiros, olhando o retrato mental dos pais, não consegue distinguir tais irmãos-adversários. Tal como eles e todos nós não percebem as oposições que marcavam os almeidistas e os afonsistas, da I República, ou os progressistas e regeneradores, do rotativismo. Obrigado, Paulo, pela lembrança! Lutemos contra o desemprego! Navegar é preciso, sobreviver não é preciso...

Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio.

Ó vós, homens sem sal, em cujos corpos tensos
Corre um sangue incolor, da cor alva dos lírios
Vós que almejais na carne o estigma dos martírios
E desejais ser fuzilados sem o lenço.

Ó vós, homens ilumidados a néon
Seres extraordinariamente rarefeitos
Vós que vos bem amais e vos julgais perfeitos
E vos ciliciais à idéia do que é bom.

Ó vós, a quem os bons amam chamar de os Puros
E vos julgais os portadores da verdade
Quando nada mais sois, à luz da realidade,
Que os súcubos dos sentimentos mais escuros.

Ó vós que só viveis nos vórtices da morte
E vos enclausurais no instinto que vos ceva
Vós que vedes na luz o antônimo da treva
E acreditais que o amor é o túmulo do forte.

Ó vós que pedis pouco à vida que dá muito
E erigis a esperança em bandeira aguerrida
Sem saber que a esperança é um simples dom da vida
E tanto mais porque é um dom público e gratuito.

Ó vós que vos negais à escuridão dos bares
Onde o homem que ama oculta o seu segredo
Vós que viveis a mastigar os maxilares
E temeis a mulher e a noite, e dormis cedo.

Ó vós, os curiais; ó vós, os ressentidos
Que tudo equacionais em termos de conflito
E não sabeis pedir sem ter recurso ao grito
E não sabeis vencer se não houver vencidos.

Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichibéus de mulheres
Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.

Ó vós que desprezais a mulher e o poeta
Em nome de vossa vã sabedoria
Vós que tudo comeis mas viveis de dieta
E achais que o homem alheio é a melhor iguaria.

Ó vós, homens da sigla; ó vós, homens da cifra
Falsos chimangos, calabares, sinecuros
Tende cuidado porque a Esfinge vos decifra...
E eis que é chegada a vez dos verdadeiros puros.





27.11.07

Pela portugalização liberal das Espanhas!

Imagem picada aqui

Apetecia começar o meu postal de hoje com o que já aqui emiti, retomando texto escrito há algumas décadas. Porque sei e valia mais não saber, valia mais esquecer-me de quem sou e, renegando os princípios por que me querem prender, entregar-me às doces polícias do pensamento que sem proibir nos querem silenciar.Valia mais censurar-me, arrepender-me, rasgar meus versos, não acreditar. Isto é, ter o prudente medo desse bom chefe de família que tem de ganhar a vida. Ter, em suma, a cobardia de não ser e parecer sempre do lado que convém. Para quê defrontar o vento novo e arriscar causas perdidas, quando posso aplaudir o vencedor? Ser definitivamente da casta dos moderados, desses que tendo dito sim ao não, aparentando não dizer nada, podem, depois, muito convenientemente, demonstrar que não disseram o que calaram. Enfim: sobreviver, deixar a política para os políticos e a pátria para os homens de sucesso.


Prefiro emitir a entrevista que concedi a Ana Clara, do semanário "O Diabo".


— Em 1 de Dezembro de 1640 foi declarada e restabelecida a independência de Portugal face a 60 anos de domínio espanhol. Considera que podemos continuar a aspirar pela sua continuidade ou estará a nossa independência ameaçada?

Portugal nunca perdeu a independência durante os 60 anos de reinado dos Filipes, onde os Habsburgos, descendentes de Carlos V, legalmente eleitos reis de Portugal, por deliberação das Cortes de Tomar, nos integraram num império europeu que também abrangia parte fundamental daquilo que é hoje a União Europeia, incluindo Bruxelas. Em 1640 apenas houve uma rescisão por justa causa e a criação de um movimento que nos fez eleger um novo rei, num processo paralelo ao que ocorreu naquilo a que hoje chamamos Holanda. A nossa independência estará sempre ameaçada se a não fizermos radicar naquilo que Alexandre Herculano qualificava como a vontade de sermos independentes.


Isto é, a independência deriva mais de factores internos que de ameaças externas. Seria estúpido que continuássemos a antiquada perspectiva que coloca o independentismo português como mera consequência da ameaça espanholista, fazendo revisionismos históricos. A Espanha voltou a ser uma pluralidade de Espanhas e a melhor forma de as compreendermos está em reconhecermos que se está a dar uma espécie de portugalização do Estado Espanhol, como antevia Miguel de Unamuno, dado que se estão a libertar as energias das nações proibidas pelo absolutismo de Madrid, marcado pela política de Olivares.


Eu que me considero um europeísta, adepto do divisão dos imperialismos frustrados que nos geraram a Europa da hierarquia das potências, para que se possa atingir a unidade na diversidade da Europa das libertações nacionais, não posso deixar de ser um adepto da união ibérica, sob a forma de uma aliança peninsular que passe por Madrid, Barcelona, Bilbau, Sevilha, Santiago de Castela e Valência, embora sem vontade de destruir séculos de Estado Espanhol. E até acredito que no espaço europeu é possível semear essa velha ideia através da Espanha juancarlista, plural e autonómica.


— A data histórica que assinala a restauração da independência tem sido dignamente recordada? Que significado tem ainda esta data para os portugueses?

Julgo que não. Seria interessante que, num próximo dia 1 de Dezembro, a pudessemos comemorar reeditando os tratados dos grandes juristas da Restauração, como Francisco Velasco Gouveia e João Pinto Ribeiro, mas demonstrando como esses textos justificadores da revogação do título de rei de Portugal à casa de Áustria se basearam em autores espanhóis da neo-escolástica, como Francisco de Vitória e Francisco Suárez, criadores de uma teoria hispânica da democracia e das liberdades nacionais.


Porque o 1º de Dezembro de 1640 foi a base da actual perspectiva moderna, precursora da Regeneração de 1820. Sem 1640 não teríamos reinventado a identidade nacional, no contexto da Europa dos Estados Modernos, consagrada em Vestefália, não passando hoje de mera saudade sem presente, perdidos nas brumas de uma memória de autonomia nacional.


Contudo, se perspectivarmos o Portugal universal, poderíamos dizer, como ensinava Agostinho da Silva, que 1640 teve outra mais importante consequência: permitiu a criação do Brasil, permitiu que as principais energias do independentismo lusíada assentassem no lado de baixo do Equador e que se preparasse a mudança da capital do reino para o Rio de Janeiro, conforme uma estratégia nacional que estava amplamente delineada por D. Pedro II, bem antes de D. João VI. E foi do Brasil que saiu Salvador Correia de Sá para fundar outra cidade de São Paulo, a de Luanda, assim se dando corpo ao novo triângulo estratégico atlântico do oceano lusíada, entre o Rio, Luanda e Lisboa.


— Na sua opinião de e para que serve hoje a invocação da soberania nacional?

Para muitos continuarem a não perceber que a independência nacional não se identifica com os conceitos de Estado e de Soberania. O primeiro apenas surgiu em 1531, com Maquiavel. O segundo em 1576, com Bodin. O nosso D. João II e o respectivo sucessor, a quem o primeiro deu a armilar, preferiam os velhos mas não antiquados conceitos de república e de autonomia nacional, conforme foram consagrados na primeira constituição portuguesa, aprovada nas Cortes de Coimbra de 1385.


E estas ideias políticas sempre conceberam as comunidades políticas como repúblicas que se poderiam integrar numa república maior. Na altura era a bela "respublica christiana" que permitiu a "cosmopolis" do Euromundo, hoje uma Nação-Estado é algo que pode e deve integrar-se num outro grande espaço, que pode ser a Europa e a própria república universal, com respeito pelo princípio da subsidiariedade e a consequente libertação nacional, assim a Europa e o Mundo possam ser nações de nações e democracias de democracias.


Tem sido esta a reivindicação dos tradicionais humanismos europeus, desde o humanismo cristão ao humanismo laico, incluindo o maçónico, com a sua república de irmãos, como homens livres ou homens de boa vontade. Por mim, não vejo grande diferença entre Kant e João Paulo II quanto aos objectivos essenciais da vontade de independência nacional e de criação de uma república universal. Todo o nosso plural humanismo subscreve as teses de São Paulo, Marco Aurélio e Erasmo que se conjugaram em 1640.

- Depois da independência do domínio espanhol, só conseguida em 1640, o que é que foi mais importante para a História: a revolta ou a efectiva independência?


O chamado domínio espanhol é um conceito equívoco, como já o procurei demonstrar. Tem a ver com preconceitos e fantasmas que até esquecem que o nosso Filipe I, o Filipe II de Espanha, era mais português do espanhol, filho de uma princesa lusitana e de um belga, Carlos V. E talvez seja necessário recordar que quando chegaram a Madrid notícias do ocorrido em Lisboa no 1º de Dezembro, os madrilenos até ficaram satisfeitos e aprenderam, a partir de então, a ter que admitir, pelo menos, dois Estado na península.


Basta recordar que entre 1640 e 1668 vivemos em estado de guerra com um vizinho que era uma das principais potências militares da Europa e que não perdemos a guerra. Isto é, os vizinhos perderam a vontade de se mobilizarem para esmagarem a nossa vontade.


E não consta que tenham feito expedições militares para esmagarem a América Portuguesa que era, já na altura, a principal reserva das saudades de futuro do Portugal Universal. Isto é, 1640 revela que houve uma estratégia nacional de independência, misturando a massa crítica (população, mais território, mais economia, mais força militar) com a vontade de sermos independentes, o tal factor intangível que pode fazer das fraquezas, forças e que evita que as potencialidades se tornem vulnerabilidades. Se chamarmos a isso revolta com pensamento, óptimo?


— Temos perdido ou não elementos importantes da soberania nacional?


Já disse que não sou soberanista nem estadualista. A soberania pode ser entendida conforme a perspectiva de um teórico bodinista desse século XVII, um tal Miguel de Vasconcelos, que era simultaneamente soberanista e filipista, adepto de Olivares. Tal como hoje pode haver soberanistas que coloquem essa abstracção em Bruxelas, no Vaticano ou em Washington. Por mim, que sou federalista e nacionalista, prefiro a soberania divisível, para cima e para baixo. Isto é, tanto admito a transferência de parcelas dessa soberania para entidades maiores do que o Estado (p.e. para o projecto europeu ou para um Tribunal Penal Internacional), como para entidades infra-estatais (p.e. para regiões políticas).


O conceito clássico de república não pode ter medo de repúblicas maiores e menores e muito menos de coisas políticas que se passam entre os povos e as sociedades civis, naquilo a que chamamos relações transnacionais, ou trans-estaduais, assentes na autonomia das sociedades civis. Continuo mais nacionalista do que soberanista e mais federalista do que estadualista, especialmente quando não admito Estados que proíbam nações ou até Estados que construam nações. Prefiro nações que dividam Estados, para permitirem repúblicas que resultem de nações, desde que possam integrar-se noutras repúblicas maiores. Como dizia Fernando Pessoa, cada nação é sempre um ponto de passagem para a super-nação futura.


— Há quem diga que a Espanha está a conquistas pela via económica o que não conseguiu pela via das armas. Concorda?


Seria melhor descodificarmos cada um desses investimentos estrangeiros, dando o nome real às coisas conquistadoras e percebendo que o Estado não é o mercado. Num mundo de geofinança e de geo-economia, os capitais não têm pátria. Apenas reparo que muito do que dizem capital espanhol é capital das multinacionais e transnacionais que puseram a sede em Madrid, por falta de estímulos das leis e dos burocratas portugueses. Até noto que alguns dos agentes de certas promessas lusitanas de fusão vêm de capitais oriundos da Catalunha.


Acresce que face a problemas internos do Estado espanhol, muitas das vontades madrilenas de investimento são apenas consequência da autonomia financeira catalã e basca, gerando-se um excedente que desliza para ocidente, dado que a boa moeda costuma expulsar a má moeda ou, dito de outra forma, por falta de bons capitalistas portugueses, muitos destes organizam campanhas anti-espanholas, para disfarçarem a respectiva falta de qualidade face aos congéneres ditos "hermanos".


Como sou liberal, julgo que não devemos gastar energias nacionais com proteccionismos assentes em fantasmas e preconceitos. O meu nacionalismo é político e nunca económico, até porque os problemas económicos se resolvem apenas com medidas económicas, embora não apenas com medidas económicas. Precisam também de estratégia nacional, assente na autonomia das repúblicas, isto é, num poder político mobilizador e numa governação que saiba gerir dependências e navegar na interdependência, com mais política e mais sociedade.

26.11.07

Dos altos voos de um falcão...


Agradeço a Lusitana Combatente. Graças às palavras de Artaud, partilhámos altos voos de um falcão. E ao olhar assim os céus, arrepiada, constato que ele do alto mira a terra, em vez dos céus, porque entregue à missão de a libertar de ratazanas e serpentes.

Patos bravos, soares, cavalheiros da indústria e "rankings"


Há dois dias que estou de cama, doente, encruzilhado, virado, sem forças para ganhar força, os músculos doridos, as horas perdidas, neste etc. de quem está com gripe, embora seja obrigado a deslocar-me à universidade, para uma entrevista com um agente inspector, não sei bem sobre quê, dado que apenas tenho conhecimento da epígrafe de um ofício, remetido pelo burocrata-mor da minha pequena unidade orgânica.


Munido de umas centenas de páginas referentes ao que eu penso ser o objecto da inspecção, lá sairei do calor do lar, depois de almoço. Por agora, apenas a sensação de, pela primeira vez, usar o portátil na cama, mas com suficiente lucidez para me aperceber da grande confusão que marca os patrões capitalistas destes restos de Portugal, com a CIP dividida entre os patos bravos e os cavalheiros da indústria e com a fusão do BCP e do BPI a ser chão que deu uvas, com mais uma vitória dos interesses de Berardo.


Passando para a politiqueirice, registam-se mais umas ponderadas afirmações de Mário Soares sobre o PS, onde, ao considerar que Sócrates é bom porque é um "anti-Guterres", transforma todos os elogios ao actual Primeiro-Ministro em atestados de incompetência ao antigo Primeiro-Ministro pós-cavaquista do PS. Apesar de tudo, apenas aconselha que o PS "vire" um "bocadinho mais à esquerda". Por outras palavras, o patriarca continua o seu ofício de ausente-presente, nessa viagem de um "eu" que já perdeu as respectivas "circunstâncias", sempre com discretas mensagens do além, para os insignes ficantes deste aquém...


Vale-nos que há um grupo de patrões, os da CCP, que se insinuam junto da CGTP, para uma acção mista de greve e de "lock out", enquanto o inspector máximo das polícias as arrasa e o PGR ameaça o governo. Enquanto isto, a Universidade de Coimbra congratula-se de ter ficado no primeiro lugar entre as congéneres lusitanas, no "ranking" do jornal "The Times", enquanto outros salientam que, contexto da OCDE, em termos de instrução, estamos em 29º lugar, abaixo da Turquia. Apenas acrescento que, por esta e por outras, é que Gilberto Madail se ufana: no "ranking" da UEFA continuamos nos dez primeiros, enquanto no das universidades a primeira é apenas a 319ª, seguida pela UNL em 341º.


Fiquei esclarecido quanto ao provincianismo que procura reduzir uma avaliação universitária a simples "slogan". Mas fui ver os tais "rankings". Reparei que a esmagadora maioria são de universidades do mundo anglo-saxónico. Por exemplo, nas cinquenta primeiras das Ciências Sociais, apenas aparecem duas chinesas (23º e 44º), uma japonesa (24º), a Católica de Lovaina (42º), a de Copenhaga (45º) e a de Viena (46º). Em artes e letras, Pequim (18º), Singapura (21º), Tóquio (24º), Sorbonne (29º), Paris-ENS (33º), Berlim (38º), Jerusalém (39º), Lovaina (43º), Fudem-China (46º) e Bolonha (47º). Em Tecnologia, Tóquio (9º), Zurique (13º), Tshingua (16º), Quioto (29º), Bombaim (33º), Politécnica francesa (34º), Delhi (37º), Lausanne (47º), Coreia (48º).


Por outras palavras, seria melhor reconhecermos a falta de estratégia do Portugal dos Pequeninos com a mania das grandezas. O que tem como consequência transformarmos as potencialidades em vulnerabilidades. Por outras palavras, equipas da segunda e terceira divisão não podem copiar o modelo de jogo das primeiras classificadas da liga de primeira, pedindo aos treinadores de bancada, nomeadamente aos burocratas improdutivos do eduquês, que lhes traduzam em calão as tácticas da destruição não criadora.


É por isso que passei estes dias a verificar como o que tem sido alertado por muitos continua no veto de gaveta. Fiquei apenas satisfeito quando visitei o blogue de Raquel Patrício. Afinal, sempre há jovens universitários que pensam sobre as circunstâncias, com qualidade e esperança. Os outros transformam a reforma universitária em joguinhos politiqueiros ...

23.11.07

Será que a luta de classes está de regresso?


No Semanário, do passado dia 15, analisaram-se as limitações ao Estado Providência, a perda de direitos e regalias, a erosão dos salários, o aumento do desemprego, realidades que hoje se fazem sentir em muitos países da Europa, particularmente em Portugal, podem ser, a longo prazo, o gérmen de uma nova luta de classes, à luz dos conceitos marxistas. Ao lado de Jaime Nogueira Pinto, Joaquim Aguiar José Gil, Manuel Villaverde Cabral e Ivan Nunes, prestei o seguinte depoimento:


Também José Adelino Maltez não parece considerar que desponte uma nova luta de classes. Escreve este professor da Universidade Técnica de Lisboa: "O que agora temos é uma nova questão social, misturando problemas não resolvidos da velha questão social, que Jerónimo de Sousa ainda traduz no calão da velha luta de classes, com a emergência de uma nova realidade da governança sem governo, que tanto dizemos ser integração europeia como globalização.".


... começou por fazer o raio X ao Estado Providência: "O chamado "Estado Providência", ou, em termos gerais, a intervenção dos aparelhos de Estado na sociedade e na economia, tanto pode ser a resposta bismarckiana à questão social da segunda metade do século XIX que, em Portugal, foi traduzida pelo Estado Novo salazarento, com meio século de atraso, como o "Welfare State" do pós-guerra, do relatório Beveridge, que começou a ser traduzida entre nós com o marcelismo, pintando-se de vermelho pintasilguista com o PREC e a pós-revolução do Bloco Central, dita keynesiana."


... não deixa de elogiar Marx, o que só surpreende quem não o conhece bem. "Marx é um velho subsolo filosófico que a todos nos ilumina, mesmo a liberais como eu e nada tem a ver com as vulgatas neomarxianas do leninismo, do maoísmo. Até o velho Karl se insurgia contra as ideologias de conserva, dizendo que não era marxista. Na prática, a teoria é outra, porque, sobretudo em Estados da nossa dimensão, a maioria dos factores de poder já não são nacionais, e os governos são meras pilotagens automáticas que só podem garantir as independências nacionais se conseguirem gerir dependências e interdependências. Pena é que não reparem na velha lição segundo a qual os problemas económicos só podem resolver-se com medidas económicas, mas não apenas com medidas económicas. Isto é, só se conseguirem repolitizar os velhos Estados, libertando-se das adiposas gorduras de aparelhos que foram feitos para dar resposta à velha questão social, mas que não admitem que a nova questão social implica a meritocracia e a consequente avaliação das competências, segundo o critério da justiça e não da inveja igualitária."


Na edição de hoje, continua o depoimento, agora sobre a eventual ortodoxia do PCP, aparecendo mais estas declarações da minha autoria:


"Ainda bem que Jerónimo de Sousa quer manter intacto o museu do neo-realismo. De outra forma, a UNESCO, em nome da defesa da ecologia, tinha que declarar o PCP como património da humanidade. O cunhalismo ortodoxo e as festas do Avante são como o fado, as peregrinações a Fátima ou as marchas populares de Lisboa. Destruí-los seria atentar contra a nossa identidade profunda. E os comunistas portugueses até agradecem a queda do muro e a implosão da URSS. Agora podem ser mesmo comunistas de sonho."


22.11.07

O país real. A fronteira com Espanha recuou para Setúbal



Nestas conversas de corredor, de que é feita a universidade, discutia há pouco com o meu colega Mora Aliseda sobre as diferenças de desenvolvimento entre o interior de Portugal e o interior de Espanha. Pouco depois, ele mandou-me um mapa, elaborado pelo Professor Doutor João Ferrão que, por acaso, é secretário de Estado do actual governo. Fiquei esclarecido. A azul claro estão as freguesias regressivas, a azul mais escuro, as que estão em coma. Percebi a falta que nos faz um resto de Estado que volte ao lema do rei povoador. E voltei a admitir que deveríamos acabar com a capital, começando pela compressão dos capitaleiros, especialmente dos que continuam a estratégia desenvolvimentista do crescer a caminho do mar sem crescermos por dentro e para dentro. Confirmei que Portugal é uma ilha, sem direito a jangada de pedra. Não tarda que sejamos atirados borda fora. E não há ninguém que declare o estado de emergência? Por mim, preferia a institucionalização de regiões, por razões de salvação pública, e que se apostasse numa estratégia nacional assente em perspectivas rurbanas...

Voltei a dar razão a meu mestre Herculano, quando ele denunciava o centralismo como um fideicomisso do absolutismo, mantido no liberalismo e na democracia. Percebi Joaquim Pedro de Oliveira Martins e a sua lei de fomento rural. Entendi Ezequiel de Campos e a sua denúncia sobre a falta de organização do trabalho nacional. Procurei saber se ainda existe um partido de agrocratas, como o defendeu Rodrigo Morais Soares. Dizem-me até que a semente lançada por Gonçalo Ribeiro Teles deu em fados e guitarradas, numa espécie de produção de novas melancias de outra cor, ao serviço do PSL.

E meditei nalgumas imaginações. Mudarmos o parlamento para o Porto. A sede do poder judicial para Coimbra. Restaurarmos o reino e o rei povoador, sem o confundirmos com a monarquia. E até me apeteceu propor que minha universidade deixasse de ser UTL e passasse a ser Universidade Técnica de Portugal, com todos os mestres e instalações lá para as bandas de Elvas, mas sem que se repetissem competidores em Lisboa. Cheguei à conclusão que me chamariam louco, por ousar uma espécie de um arquipélago de novas Portugálias, assim à maneira de Brasília, plurais e com diminutivos. Concluí apenas que estou a querer grandeza, incompatível com este Portugalório de bonzos, canhotos e endireitas. Mas não decidi calar.

Com que direito pretendem canalizar a inteligência, dar diplomas ao Espírito?


O espaço criativo daquilo que continua a ser a universidade, a dos alunos e dos professores que querem ensinar e aprender, uns com os outros, tem-me absorvido por estes dias, especialmente quando se consegue furar o bloqueio com que as más leis, os péssimos regulamentos e os automáticos burocratas, dia a dia, nos tramam, de forma quase kafkiana. Felizmente, tive a ocasião de poder casar a honra com a inteligência e de assim participar numa iniciativa de alunos que se pratica desde os anos oitenta do século passado, a que eles dão o pomposo nome de Jornadas de Relações Internacionais, onde, como coordenador de um departamento que continuam a proibir, fiz breve discurso de iniciação, pedindo ao regime da bolonhesa que deixe entrar esta invenção como parte das unidades de crédito, dado tratar-se de uma continuidade das velhas sessões quodlibéticas da Idade Média, quando Bolonha não nos vinha de cima para baixo, dos eurocratas para os ministros e dos ministros para os povos.


Claro que a minha bolonhesa é outra. Tem mais a ver com um velho aluno da instituição, um tal João Hispano, a que, nós demos o nome de João das Regras, esse constitucionalista que elaborou, pelo discurso, a primeira constituição portuguesa, mais ou menos escrita, a das actas das Cortes de Coimbra de 1385, talvez uma das primeiras perspectivas políticas consensualistas pós-feudais que, sem esforço, podemos equiparar à ideia de democracia, baseada no princípio dito do QOT que, traduzido do tópico latinista, sempre quis dizer: o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido. O tal princípio, bem relatado por Fernão Lopes, assente no dever geral de conselho, que obrigou à eleição do rei, contra os pactos de Salvaterra do senhorio de honra, em nome do senhorio natural das velhas franquias nacionais que, entre nós, nunca admitiram o rei morto, rei imposto, quando os reinos não eram monarquias de tradução em calão.


Claro que os pretensos bolonheses dos nossos dias têm outra genealogia. Dizem que estão contra o "magister dixit", mas praticam coisa pior: o "burocrata dixit". Pior: cedem ao domínio do ninguém (Hannah Arendt) de certo comunismo burocrático (J. P. Oliveira Martins) que assume o gnosticismo das reformas feitas de amanhãs que cantam e continuam essa estratégia lançada pelo veiga-simonismo, que sempre foi a de irmos de decretino reformista em decretino conservador do que está, a caminho da derrocada final da ideia criativa de universidade.


Por isso me entusiasmou o pensamento essa possibilidade de uma aula medieval "de quod libet", sem magistrais lições de sapiência, mas com o peripatético da tópica da Academia de Platão e do Liceu de Aristóteles, que sempre foi dar um passeio à volta de um problema, tirando várias perspectivas da coisa complexa, conforme as concepções do mundo e da vida dos observadores que pensam de forma racional e justa. O problema que ontem debatemos foi o do politicamente correcto e tive a honra de imoderadamente moderar os meus colegas e mestres Saldanha Sanches e Rosado Fernandes, sem que este último assumisse a postura hierarquista de antigo reitor dos outros dois.


E lá se foram os fantasmas e preconceitos da direita e da esquerda e lá se destruíram as pretensas barreiras dos palanques das pretensas autoridades que o pensam ser só porque falam de cima para baixo, como actores face a uma audiência passiva. Porque os auditores também passaram a autores e tiveram intervenção. Julgo que não houve jornalistas assistentes, mas a coisa já chegou a blogues. Aliás, como o tal estado é sentido, apenas acrescento a carta que os mesmos quodlibéticos imediatamente reproduziram, para conhecimento dos reitores e ministros da bolonhesa:


Senhores Reitores,


Na estreita cisterna que os Srs. chamam de "Pensamento", os raios espirituais apodrecem como palha. Chega de jogos da linguagem, de artifícios da sintaxe, de prestidigitações com fórmulas, agora é preciso encontrar a grande Lei do coração, a Lei que não seja uma lei, uma prisão, mas um guia para o Espírito perdido no seu próprio labirinto.


Além daquilo que a ciência jamais conseguirá alcançar, lá onde os feixes da razão se partem contra as nuvens, existe esse labirinto, núcleo central para o qual convergem todas as forças do ser, as nervuras últimas do Espírito. Nesse dédalo de muralhas móveis e sempre removidas, fora de todas as formas conhecidas do pensamento, nosso Espírito se agita, espreitando seus movimentos mais secretos e espontâneos, aqueles com um caráter de revelação, essa ária vinda de longe, caída do céu.


Mas a raça dos profetas extinguiu-se. A Europa cristaliza-se, mumifica-se lentamente sob as ataduras das suas fronteiras, das suas fábricas, dos seus tribunais, das suas universidades. O Espírito congelado racha entre lâminas minerais que se estreitam ao seu redor. A culpa é dos vossos sistemas embolorados, vossa lógica de 2 mais 2 fazem 4; a culpa é vossa, Reitores presos no laço dos silogismos. Os Srs. fabricam engenheiros, magistrados, médicos aos quais escapam os verdadeiros mistérios do corpo, as leis cósmicas do ser, falsos sábios, cegos para o além-terra, filósofos com a pretensão de reconstituir o Espírito. O menor acto de criação espontânea e um mundo mais complexo e revelador que qualquer metafísica. Deixem-nos pois, os Senhores nada mais são que usurpadores. Com que direito pretendem canalizar a inteligência, dar diplomas ao Espírito?


Os Senhores nada sabem do Espírito, ignoram suas ramificações mais ocultas e essenciais, essas pegadas fósseis tão próximas das nossas próprias origens, rastros que às vezes conseguimos reconstituir sobre as mais obscuras jazidas dos nossos cérebros. Em nome da vossa própria lógica, voz dizemos: a vida fede, Senhores. Olhem para seus rostos, considerem seus produtos. Pelo crivo dos vossos diplomas passa uma juventude abatida, perdida. Os Senhores são a chaga do mundo e tanto melhor para o mundo, mas que ele se acredite um pouco menos à frente da humanidade.


A missiva data de 1925. A autoria cabe a um tal Antonin Artaud. Na minha universidade, de acordo com uma sábia regra emitida pelo sistema, ela de nada vale. Estamos condenados a uma ditadura de perguntadores, dado que nos obrigam a escolher entre dois situacionismos: de um lado, uma lista dos apoiantes do senhor ministro Gago e, do outro, uma contra-lista do senhor reitor Ramoa, onde, num sítio, estão os governamentais e, no outro, os defensores do estado a que chegámos, adeptos da filosofia do Conselho de Reitores, liderados pelo vice-reitor conimbricense, Avelãs Nunes, mas com todos a invocarem uma bolonhesa, deles. Como a minha é do João das Regras, contra o Marquês de Pombal, sou obrigado a desobedecer contra o Veiga Simão I e contra o Veiga Simão II e III. Vou continuar a reivindicar a possibilidade de poder discutir com Saldanha Sanches e Rosado Fernandes e a votar na Academia e no Liceu, repetindo o grito de revolta de Unamuno contra os invasores do templo, mesmo que se disfarcem de vendilhões de amanhãs que cantam, na loja dos trezentos.

21.11.07

Entre Chávez e Hitler, venha o diabo e escolha o fornecedor de gás natural!


Se eu tivesse que dar um conselho aos chefes da república dos portugueses, dir-lhes-ia que um diplomata até deve conversar com o diabo. Logo, acho normalíssimo que Sócrates receba o semi-índio venezuelano e que encene, com pompa e circunstância, um contrato de fornecimento de produtos petrolíferos, com eventuais garantias de não-perseguição a mais de meio milhão de portugueses e luso-descendentes. Ai da diplomacia de uma democracia pluralista que corte os canais de comunicação e de negócio com bem mais de metade da humanidade que não obedece aos nossos conceitos de poliarquia e de Estado de Direito.



Dizer isto não significa que goste de ver o meu avozinho da democracia, o meu querido Mário Soares, sem ironia, transformado em caixeiro viajante de uma companhia petrolífera, mesmo quando subscreve o velho ditado, segundo o qual o que é bom para a Galp é bom para a República Portuguesa. Porque o terei de comparar às incoerências do regime salazarento que tanto decretou luto nacional pela morte de Hitler, o tal que mandou assassinar o salazarista austríaco Dolfuss, como sempre manteve relações diplomáticas com o regime de Fidel de Castro. Não por causa daquilo que Sócrates também fez com Chávez, mas pelo discurso para consumo interno que produzia.



Aliás, não consta que o ministro e primeiro-ministro Mário Soares tenha alguma vez proposto o corte de relações diplomáticas com o regime de Augusto Pinochet. Ou que não tenha continuado a admirar Salvador Allende, ou a ser amigo do seu camarada socialista venezuelano Carlos Andréz Perez. Sempre gostei do Oliveira de Figueira e dos caixeiros viajantes da política, mas prefiro a liberdade de expressão das minorias.



Se eu fosse venezuelano também detestava Chávez. E não o justificava com a chegada ao poder pela via eleitoral, quase nas mesmas circunstâncias em que Hitler conquistou os aparelhos de repressão. Sou mais poliárquico do que democratista, pelo que só quero democracias que não sejam absolutistas, mas antes pluralistas e poliárquicas. Porque tanto pode haver absolutismos monárquicos de um só, como absolutismos democráticos, quando se tira o rei absoluto e se põe, em lugar do dito, o povo absoluto, produtor de terror. Por mim, só sou democrata se a democracia for liberal, conforme as tradições pluralistas que nos foram legados pela revolução inglesa, pela revolução norte-americana e pelas pós-revoluções demoliberais da história europeia e americana, ao Norte e ao Sul. Continuo malhadamente cartista e liberdadeiro.



De outra maneira teria que subscrever o conceito de democracia de certos totalitarismos contemporâneos, marcados pelos sovietistas, pelos maoístas ou pela instrumentalização que os nazis fizeram do povo em movimento. Logo teria que admitir a hipótese de uma ditadura de uma vanguarda, de um Estado, de um partido único ou de uma maioria eleitoral conjuntural. Prefiro dizer democracia à Robert Dahl ou à Karl Popper: o problema fundamental das actuais democracias pluralistas e de Estado de Direito não é medir quem manda, mas controlar o poder daqueles que mandam, salvaguardando as minorias, isto é, permitindo que a liberdade as transforme, eventualmente, em futuras maiorias, isto é, admitindo os golpes de Estado sem sangue que resultam das alterações por via eleitoral.
PS: Agradeço às ficções de Georges Prosper Remi, vulgo Hergé, e de Henry Miller, as ilustrações supra, para quem quer enfiar a carapuça dos lojistas ambulantes. Não quero recordar a condecoração que Chávez deu a um ilustre guru do nosso Bloco de Esquerda. Ainda podiam dizer que estava a defender a memória de Moses Bensabat Amzalak, coisa que farei de outra maneira.

20.11.07

Todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação


Os chineses do século XVI diziam que os portugueses eram bárbaros, isto é, diabos vermelhos, porque comiam pedras (pão) e bebiam sangue (vinho), tal como outros povos diziam que os cristãos eram antropófagos porque, em seus cerimoniais, comiam o corpo de um deus feito homem. É o que fazem todos os que são marcados pela incompreensão face aos símbolos decepados da unidade espiritual de que os rituais são simples parcela.


É por esta e por outras que detesto todo o sectarismo que pretende monopolizar o sagrado para a respectiva liturgia e que, fradescamente, semeia a intolerância, insinuando o ridículo face as alfaias que os outros usam para os mesmos fins. Afinal, todas as liturgias são ridículas fora dos templos em que se dá a comunhão e a religação. Contudo, mais ridículos ainda são os que não têm liturgia sentida por dentro, ou os que se ficam pelos sucedâneos e pelas vulgatas de certo dogmatismo pretensamente antidogmático.


Por mim, que, sobre as verdades eternas, apenas sei que nada sei, resta-me continuar a procura da verdade, pelos variados caminhos que segue aquele que apenas pretende ter a boa vontade daqueles que querem conquistar a glória do homem livre. Porque ninguém pode deter o monopólio do "imprimatur" e do "nihil obstat" para a edição desses manuais de metodologia, com os consequentes livros únicos dos inquisidores, vanguardistas, vigilantes da revolução, ou contínuos e sargentos do senhor director.

O hábito, se não faz o monge, sempre consegue disfarçá-lo


Sempre às volta com McLuhan e a aldeia global. Porque tanto na Galáxia de Gutenberg como na Galáxia de Marconi o "medium" é mais importante do que a "mensagem". Porque, afinal, o hábito se não faz o monge sempre consegue disfarçá-lo, embora nem só a vestimenta faça o corpo que a sustenta.


Claro que Gutenberg permitiu traduzir a bíblia com que Lutero desfez a "respublica christiana" e o império restaurado pelos papas na constelação de poderes que sustentava os Habsburgos. Da mesma maneira, as tipografias e os tipógrafos fizeram as democracias liberais e os nacionalismos das primaveras dos povos do século XIX. Tal como a electricidade promoveu o comunismo e o transístor e a electrónica tiveram como consequência a queda do muro e o fim do sovietismo, que acabou por não ser o fim da história.


Porque graças à dita Guerra Fria surgiu a Internet e graças à teledemocracia surgiram os Sócrates, os Sarkosy, os Berlusconi e os Blair. Porque, em política, se o que parece foi, agora só o que aparece é que pode ser, desde que haja adequado investimento em agências de comunicação. McLuhan tem mesmo razão, a propaganda para ser eficaz não pode parecer que é propaganda.

19.11.07

"Caminhais aliados... caminhais secretos... caminhais libertos... caminhais sozinhos... caminhais em mim".


Agradecendo ao Zé Mateus, este regresso a Fernando Pessoa...

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados.
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizontes,
Caminhais libertos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte,
Caminhais sozinhos.

Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.

18.11.07

Retalhos da gloriosa vida quotidiana do nosso rotativismo


Basta lermos "The Economist" ou o editorial do semanário "Sol" para percebermos a trama. O primeiro já qualifica Luís Filipe Menezes com o carimbo de "populist". O segundo acaba por concluir que Sócrates será reeleito, porque em Portugal todos os primeiros-ministros que se recandidataram foram sempre reeleitos. Por outras palavras, voltámos ao velho rotativismo da Convenção do Gramido, a que consagra a existência de um protector estrangeiro capaz de definir o nosso politicamente correcto, bem como ao modelo onde durante décadas e décadas nunca tivemos eleições livres perdidas pelos governamentais.


Em primeiro lugar, os governos que comandam a distribuição dos postos e das postas a partir da mesa do orçamento só não ficam com a melhor parte se forem burros ou não perceberem da arte. Porque:


Há entre el-rei e o povo
Por certo um acordo eterno:
Forma el-rei governo novo
Logo o povo é do governo
Por aquele acordo eterno
Que há entre el-rei e o povo.
Graças a esta harmonia
Que é realmente um mistério,
Havendo tantas facções,
O governo, o ministério
Ganha sempre as eleições
Por enorme maioria!
Havendo tantas facções,
É realmente um mistério!

(João de Deus)


Em segundo lugar, um qualquer marechal saldanha, ou um qualquer ministro de cabral, quando se sente à rasca com a emergência de uma qualquer patuleia, costuma dizer que, se esta tem sotaque nortenho, deve ser oriunda do miguelismo e, portanto, potencialmente, populista, radical, anti-europeísta e, quiçá, fascista.
Porque, encerrado o período de sangrentas lutas caseiras, entra em cena um regime centrista e nacionalizado, herdeiro conservador de um romantismo que fora revolucionário. Não passa de uma simples conciliação de sinais contrários, onde emerge, como consequência e motor, o cepticismo político que trata de conjugar o progresso em termos de melhoramentos materiais, mas onde também se agrava uma dominância banco-burocrática, assente no indiferentismo popular, bem como uma ilusão de crescimento dependente da engenharia financeira.


É neste ambiente de lassidão moral que se implanta um capitalismo dependente do empréstimo estrangeiro, gerando-se uma mentalidade oficial plutocrática marcada pelo utilitarismo. O melhoramento material parece ser a única alternativa a esta decadência. Ao menos a estrada de macadame, a malaposta, o tramway e o fontanário, esses sinais da política prática servem para justificar o abandono das utopias doutrinárias. E os patuleias, depois de uma passagem pelo republicanismo de orçamento ou lunático, volvem-se em progressistas à maneira de José Luciano.




Por outras palavras, quem se mete com o equilíbrio situacionista corre sempre o risco de perder o controlo sobre as adjectivações diabolizantes produzidas pelo politicamente correcto que quase sempre atinge o seu clímax quando a esquerda moderna se amanceba com a direita dos interesses.




Basta anotarmos algumas das campanhas negras mais recentes da nossa história democrática, onde, aliás, o crime sempre compensou. Não falo na invasão do Iraque e das falsidades da espionite que permitiram cimeiras e ascensões a lugares cimeiros. Prefiro recordar Sá Carneiro, acusado em plena televisão de adultério de Estado por um chefe de partido e um arcebispo, depois de os comunistas o vilipendiarem como caloteiro, na linha do que patrões da CIA tinham engendrado, apoiando preferencialmente o chefe dos socialistas, para desfazerem tacticamente o perigo de uma frente popular e da consequente unicidade antifascista.




Mas também já vi um devoto líder democrata-cristão ser ameaçado pelos líderes do PPE, recordando que ele tinha sido ministro de Salazar, para logo a seguir assistir à expulsão do seu delfim da mesma multinacional, acusado de desviacionismo populista e anti-europeísta, a fim de poderem inscrever o PSD no mecanismo.




Vejo que Menezes não caiu na esparrela de poder ser atirado pelo PPE para as raias do eurocepticismo, ao defender o referendo ao tratado. Reparo agora que também não estragou muito a paisagem face a decisões primordiais quanto a investimentos em obras públicas ou fusões bancárias. Ele sabe que os seguros podem morrer de velhos e prefere assumir a função portista de marcar o ritmo do "agenda setting", de acordo com os profissionalíssimos conselhos dos seus assessores de discurso e de imagem.


Durão vem agora confessar que foi enganado pelos espiões por ocasião da invasão do Iraque. E assim lava as mãos como Pilatos, porque graças a todos esses equívocos não foi ele o bombardeado e sempre há água benta que tira o mau cheiro a águas chocas. David Lynch vem ao Estoril apelar à meditação transcendental e a ASAE fecha a Ginjinha do Rossio, enquanto Luís Filipe de Menezes apoia a passagem de Almerindo Marques para as Estradas de Portugal, apesar de muitos andarem a promover a candidatura do gestor do regime a presidente da ASAE, dado que importaria encerrar o estabelecimento da República Portuguesa, SARL, depois do que temos ouvido de Catalina Pestana, Maria José Morgado, Alípio Ribeiro e Pinto Monteiro. Os tais que aparecem nos telejornais dissertando sobre as vírgulas do Código do Processo Penal, o combate ao terrorismo pela rectaguarda e o excesso de escutas da telemóveis não encostados a aparelhos de televisão.

Porque o Sporting levou três do Braga. O Porto levou dois do Estrela nos últimos cinco minutos do jogo. E o Benfica esqueceu-se do Celtic, graças às circunstâncias pouco loureiras do Boavista. Para que João Soares apoie Chávez, contra Juan Carlos e o Opus Dei dê razão a Bento XVI, no seu puxão de orelhas ao nosso esquema clerical. Vale-nos que a Judite já prendeu o bando do "aperta o papo", que a tasca da Badalhoca no Porto ainda vende pestiscos de dobrada e que ainda há restos de sol de Verão.

Acontece também que, lá para os lados da terra de Bandarra, o Gonçalo Annes, apareceram uns apitos douradinhos, apanhados em flagrante sem ser de litro, enquanto a Ordem dos Médicos se recusa a alterar o respectivo código deontológico por causa da nova lei da IVG. Por seu lado, Pedro Namora diz que não falou com a directora Madeira da Casa dita Pia, porque esta foi nomeada por um ministro que é amigo de dois anteriores ministros que o irritam. Já em Aguiar da Beira um cidadão morreu intoxicado por arsénio que circulava impune na água da rede pública.

A televisão, nos intervalos, vai transmitindo cenas do balneário da nossa selecção, com toda ela mobilizada por orações onde Scolari apela à virgem de Fátima. Talvez por isso é que os ditos se fiaram na mesma e não correram contra a Arménia, a tal terra esquisita donde nos veio o Charles Aznavour e o senhor Calouste Gulbenkian.