Sobre o tempo que passa
Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...
1.11.07
Há dias, um companheiro blogosférico, que se refugia no anonimato, teve a galhardia de me revelar, em confidência, a respectiva identidade, depois de indirectas provocações que me têm vindo a fazer. Nem por isso abandono a minha anterior reserva de não entrar em polémica com quem não assina, mesmo que, para mim, ele já não seja anónimo. Aliás, quero aqui confessar que também nunca aqui citei, uma aventura blogueira do meu pequeno círculo de intimidade social, onde todos utilizamos heterónimos, embora todos os frequentadores e comentadores dessa forma de expressão consigam dar nome aos intervenientes.
Prefiro notar as linhas de muito alta tensão que nos continuam a sobrevoar, enquanto nos vamos dispersando pelos variados volteios palavrosos da politiqueirice, assim alimentando inúmeros cadáveres adiados que vão procriando terrorismos de alcatifa. Nem sequer merece adjectivação essa tentativa de transformação das "Novas Fronteiras" em palanque para a tradução em calão do conceito comuno-chinoca de "desenvolvimento científico", numa altura em que a imagem de tais protagonistas parece não coincidir com a banda desenhada do Professor Pardal.
Por essa e por outras é que os nossos poderes fácticos continuam a fugir ao necessário controlo dos agentes do poder político. Não falo nas Igrejas, nos militares e nos magistrados, mas noutras coisas mais subterrâneas e sem rosto e que, ao que parece, têm dinheiro suficiente para a compra de sofisticados aparelhos de escuta, até pressionando o nosso PGR obrigando a conversas secretas junto de televisor, com o som ligado...
Também estranho que, noutro dia, ao exprimir, neste local, uma tentativa de isenta apeciação de Gomes Freire, tenham criticado a repetição que fiz da sensibilidade de Raul Brandão sobre a matéria, e que me tenha esquecido da posição maniqueísta de António Sardinha sobre tal personalidade. Não me esqueci dela, apenas a abomino. Porque não podemos peregrinar pela guerra civil de há quase dois séculos com espírito de vindicta e essa mentalidade que nos quer afogar na lógica do amigo/inimigo, sem que se estabeleçam lugares comuns mobilizadores do civismo e do patriotismo.
Chegou o tempo de perpectivarmos personalidades como Sebastião José, Gomes Freire ou D. João VI sem aqueles facciosismos historiográficos que deles fazem pretexto para interpretações retroactivas ou revisionismos que ora os deificam, ora os diabolizam. Porque todos foram intensamente amados ou odiados, segundo as concepções do mundo e da vida, ou as circunstâncias vindouras. A complexidade dos nossos egrégios avós não pode ser apenas medida pelas lentes analíticas das nossas ideologias, dos nossos medos ou das nossas esperanças.
Aqueles que dividem o mundo entre os bons e os maus, entre os patriotas e os traidores, entre os progressistas e os reaccionários, não conseguem ascender à necessária serenidade que nos pode permitir sentir a profundidade da tradição, entendida como aquelas algemas que nos podem libertar, permitindo a permanência na renovação das saudades de futuro que vão além de passados ou futuros presentes. A criatividade da história sempre exigiu vivê-la como emergência das três unidades do tempo e sempre implicou unirmos o que anda disperso.
Conheço as peças historiográficas que transformaram Gomes Freire no vazadouro dos impropérios contra o demoliberalismo e que sobre ele lançam o ferrete de traidor. São exactamente os mesmos que nem sequer reparam que Gomes Freire foi vítima de um assassinato político que, apesar de ser processualmente institucionalizado pelo ocupante, não deixa de poder qualificar-se como consequência do terrorismo de Estado.
Gomes Freire, ao liderar o processo conspiratório contra o pretenso protector inglês, semeou com a sua vida a conseguida regeneração de 1820. Uma revolta inequivocamente nacionalista e liberal que continuou as ideias e a acção do Conselho Conservador e preparou o Sinédrio. Julgo que no século XXI importa compreender as turbulência pós-revolucionária de há dois séculos. E fazer um paralelo entre homens como Gomes Freire e Fichte que, depois de cederem à pretensa "bela ordem" napoleónica, depressa aderiram à fogueira romântica das libertações nacionais e das primaveras dos povos.
Tal como os defensores das perspectivas liberais da unificação alemã e da unificação italiana, há que realçar todos os que promoveram a conciliação da ideia de nação com o sonho da casa comum europeia. E do cosmopolitismo com a o republicanismo, quando este nem sequer era antimonárquico, à maneira de Kant. Porque quem virá a ser a efectiva prisão dos povos será a Santa Aliança que estabeleceu o princípio da hierarquia das potências.
As ideias assumidas por Gomes Freire têm mais a ver com as sementes de direito das gentes que vai ser expressa pelo krausismo, como, entre nós, foi praticado por um Vicente Ferrer Neto Paiva. Por todas aquelas libertações patrióticas do dividir para unificar que geraram os posteriores federalismos de maçons e de católicos, de liberais e de socialistas que, conciliados depois da Segunda Guerra Mundial, constituem os esteios da presente unificação do projecto europeu.
Sem Gomes Freire não haveria Fernandes Tomás, D. Pedro IV, Passos Manuel, D. Maria II, Sá da Bandeira, Almeida Garrett ou Alexandre Herculano, bem como muitos outros que o ex-republicano Sardinha há-de erigir em mestres. Sem sombra de persiganga e de inquisitorialismo, Gomes Freire integra a honrosa lista dos pais-fundadores do Portugal Contemporâneo, azul e branco, que permitiu mais de um século de continuado liberdadeirismo. Denegri-lo em nome do ódio e do revisionismo histórico é removermos da nossa memória uma das fundamentais pedras vivas da tradição.
Pior ainda: não cultivar com o afecto da emoção esta comunidade das coisas que se amam, chamada nação, é extirparmos reservas morais da pátria e da liberdade. Por mim, seguidor do Conselho Conservador e do Sinédrio, que tanto alinharia no Partido da Bemposta como, por conclusão, teria que ser mindeleiro, depois de falhar a boa intenção de D. Isabel Maria, tenho de honrar Gomes Freire, porque queria evitar que o rei liberal, directo descendente de D. Maria II e de Vítor Emanuel I, D. Carlos, fosse assassinado pela cultura dos ódios terroristas que ainda nos amarfanha. Precisamos de revoluções que sejam restaurações da lusitana antiga liberdade. Precisamos de reaprender a palavra regeneração, conjugada pelos mártires da pátria, como Gomes Freire.
PS: Provocatoriamente, deixo uma imagem de 24 de Agosto de 1820 e uma foto de Joshua Benoliel, de 1917, sobre as cerimónias populares de homenagem a Gomes Freire
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