a Sobre o tempo que passa: Como o totalitarismo doce desta democratura vai lançando as suas teias de medo

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

24.1.08

Como o totalitarismo doce desta democratura vai lançando as suas teias de medo


Qualquer observador das cenas de teatrocracia do regime, se quiser ir além da face visível da politiqueirice pode, um dia, compreender as causas profundas que moveram o novo aeroporto da Ota para Alcochete, ou melhor: a razão que ditou a decisão governamental quanto à não utilização do Campo de Tiro para fins militares, permitindo um novo comparativismo técnico. Julgo que, neste momento, só o chefe do governo e o presidente da república têm suficiente informação global sobre a matéria, dado que os portugueses que vão pagar a coisa só dentro de alguns anos terão direito a adequadas explicações sobre os segredos desse negócio de Estado que talvez vá além da mera especulação imobiliária e dos interesses dos grandes empresários federados pelo presidente da CIP. E também não vale a pena a imaginação criadora das grandes teorias da conspiração.


Basta-me notar como a nossa independência é cada vez mais uma gestão de dependências, não apenas no contexto da hierarquia das potências, mas, sobretudo, na flexibilidade que temos de usar face a uma reviravolta nos investimentos de uma ou outra rede de firmas transnacionais. Quando a Autoeuropa tem a dimensão que é confirmada pelas estatísticas, podemos, sem dificuldade, compreender que quem manda em Portugal é quem sabe das reais boas intenções de certos potenciais grandes investimentos que aqui podem aterrar. Sobretudo, quando o interior está desertificado e despovoado e os aparelhos definidores da estratégia nacional não parecem ter em linha de conta essa grande vulnerabilidade.


Com efeito, os grandes consultores do nosso desenvolvimentismo pós-revolucionário, entre as lições de estratégia do saudoso comandante Virgílio de Carvalho e as grandes opções dos planos e de Valente de Oliveira e Ernâni Lopes, a que chamaram integração europeia, ainda não fizeram aquele crescimento interior que nos devia recordar a política de D. Sancho I, sem que se caia no habitual folclore do ecologismo e do regionalismo, mal digeridos. Por outras palavras, a culpa não está na decisão de Sócrates e no consenso que lhe deu Cavaco, a culpa está numa estratégia que teve consequências negativas para o entendimento da pátria como um todo de terra e de gente.


Agora, estamos dependentes do rebentar da bolha da especulação imobiliária, na precisa altura em que a maioria das famílias se entregou às hipotecas bancárias, por causa da casita que compraram e que pensavam ser um investimento seguro. E a coisa é mais cultural do que económica, embora a prometida lei das rendas facilitasse as opções. Daí que continuemos em contraciclo mental face aos nossos parceiros que mais crescem para cima por dentro, onde os lucros da banca são directamente proporcionais ao endividamento dos indivíduos, propiciando o alastrar do negocismo e dos caloteiros.


Até grande parte da crise universitária tem a ver com a questão das assoalhadas. Ainda ontem, circulano à hora do almoço pelo meu "campus", contava a um jovem despedido pelos recibos verdes quem havia sido a firma construtora que entregara ao Estado os edifícios antes do prazo, com equipamento electrónico e mobiliário que a ninguém serviu, dando-lhe o nome do docente que o director nomeara para acompanhar as obras, por acaso uma célebre figura gestora de uma fundação gestora de habitações sociais. E depois, lá lhe mostrava o ginásio da instituição, onde o gestor não era a faculdade, cientificamente ligada ao processo, mas uma firma qualquer onde pontificava um qualquer ex-líder de uma associação de estudantes, membro daquela geração que também elevou colegas a directores de relações públicas de marcas de cerveja e a recentes firmas de informática, gestão de páginas internéticas de grandes políticos e, mais recentemente, a fornecedores de serviços docentes a mestrados de província.


O meu jovem companheiro de ontem acabava de ser despedido sem direito ao conceito de despedimento, por parte de um ilustríssimo serviço público, sem qualquer prévio aviso, à boa maneira do tratamento de escravos e não sabe como vai arranjar os cerca de mil euros mensais para pagamento da hipoteca, das assoalhadas onde tem que educar o recente bébé. Vítima desta bolha, faz parte daquela geração flutuante que os juros do Euribor e o emprego precário do sistema bancoburocrático lhe propicia. Se alguém não entender como o totalitarismo doce desta democratura vai lançando as suas teias de medo, continue a discutir a não aprovação do regime de unidose proposto pela Teresa Caeiro...