a Sobre o tempo que passa: Só é novo aquilo que se esqueceu

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.1.08

Só é novo aquilo que se esqueceu


No dia de São Miguel Torga, o nosso senhor ministro da Justiça veio dizer que Portugal não é uma república de procuradores-gerais adjuntos. O senhor ministro da economia poderá depois declarar que não somos uma república de comerciantes. O da saúde que não somos uma república de médicos. O das finanças que também não somos uma república de banqueiros. Tal como o primeiro-ministro gostaria que o governo não fosse uma confederação de ministérios, onde cada ministério não passa de uma federação de direcções-gerais, assentes em partidos, feitos ajuntamentos de boys à procura de jobs através de cunhas, pressões e grupos de interesse. Seria melhor que voltássemos a ser uma simples república, à maneira de Cícero, isto é, uma harmonia entre a liberdade, a autoridade e o poder, onde a libertas deve estar na participação directa do povo na decisão política, a auctoritas, nos órgãos que conservam a memória da fundação da cidade e detêm o poder legislativo, e a potestas, no poder executivo da governança.


Seria melhor que recordássemos os primeiros escritos sobre política, pensados e escritos em português, os do Infante D. Pedro, quando este já considerava que o dominium politicum não tem a mesma natureza do dominium servile. O primeiro tem a ver com a república, o segundo com o dono. Porque nós inventámos a política para deixarmos de ter um dono.

Aliás, ele já visionava a comunidade política como uma espécie de concelho em ponto grande, proclamando deverem os príncipes promover o bem comum, dado que por esto lhe outorgou deos o regimento, e os homees conssentiron que sobrelles fossem senhores.

Salientava que, então, já não se vivia no soingamento do dominium servile, tendo algo da liberdade do dominium politicum, daquele que institui o aliquod regitivum, que não nasce do pecado original, mas é outorgado ao rei pelo consentimento dos homens. Porque já éramos república antes de haver republicanos e monárquicos, e de os monárquicos, feitos bobos de uma corte que não há, fazerem política de imagem com adesivos republicanos e viracasacas monárquicos, esses ecléticos que variam conforme as conveniências e que detestam todos os monárquicos que, antes de o serem, já eram republicanos, só porque aqueles caquéticos do costume confundem a monarquia com a tirania, ou o mais doméstico despotismo, mesmo que seja o da teocrática mistura do trono e do altar, ou da mesa do orçamento e do mecenato, benzida pela sacristia do mais do mesmo.


Seria melhor que se relesse o Leal Conselheiro (1437) do mano do Infante, el rei D. Duarte, para quem, no reino, haveria cinco estados ou classes: o clero (os oradores), os guerreiros (defensores), os lavradores e pescadores, entendidos como pees em que toda a cousa publica se mantem e soporta, os oficiais, considerados os mais principaaes consselheiros, juizes, regedores, veedores, scrivãaes e semelhantes e os que usam de algumas artes aprovadas e mesteres.


O mesmo D. Duarte que abordava outros problemas políticos, nomeadamente as relações entre a prudência política e a justiça. A prudência, a qual se pinta com três rostos, porque se entende lembrança das cousas passadas, consideração das presentes e providência para o que pode acontecer ou esperamos que seja.


Considerava mesmo três virtudes: saber, crer e poder. O saber por prudência se rege, o crer por justiça, e o poder por temperança nas cousas deleitosas e por fortaleza em contradizer, cometer e suportar os feitos de temer, ou sentir perigos, trabalhos, nojos grandes, despesas, desprazimento de algumas pessoas, se cumprir por guardar ou percalçar virtudes.


É que os reinos não são outorgados para folgança e deleitação, mas para trabalhar, de espírito e corpo, mais que todos. Porque aos Príncipes cumpre de reger e encaminhar seu povo em ordenado e devido fim e isto faz prudência. Mas o Príncipe não pode encaminhar o povo a bom fim, não conhecendo o fim. Até porque, destruído o povo, destruído é o principado. Só é novo aquilo que se esqueceu, só é moda aquilo que passa de moda.