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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.1.08

De boas intenções higienistas, está o inferno da nossa história cheio...


Assisti ontem e na madrugada de hoje ao célebre debate do Prós e Contras sobre a lei da proibição de fumar em locais de trabalho e de paparoca, num programa que costuma ter a função que devia caber ao Canal Parlamento. Lá não estava o meu amigo António Nunes, mas antes o DGS e o director da Escola Nacional de Saúde Pública, com estes dois últimos a tentarem, cerca de cem anos depois, repetir o magistério de Ricardo Jorge, isto é, a tentarem actualizar a versão do clássico Estado Higienista, daquele que, entre nós, emitiu, em 1905, pioneiras leis de defesa da qualidade alimentar, mesmo antes da França, ou que permitiu aos republicanos elegerem os deputados da peste, só por causa de uma necessária quarentena imposta à cidade do Porto, para não falarmos da famosa proibição da Coca Cola, porque o produto, se seguisse o nome, em conteúdo, era droga ou, se o não seguisse, não passava de publicidade enganosa, como o daquele "slogan" do publicitário Pessoa, o tal "primeiro estranha-se e depois entranha-se".

Julgo que os nossos bem intencionados inquisidores do tal Estado Higienista devem compreender que os bons fins não conseguem remendar os péssimos meios de legiferação que têm de utilizar. Porque a lei proibitiva vigente não obedece aos mínimos de generalidade e abstracção e até parece admitir a analogia em matéria penal, gerando, ao mesmo tempo, uma espécie de direito de segunda ordem, onde as dúvidas e casos omissos parecem poder ser resolvidos por circulares de directores-gerais e inspectores-superiores, eventualmente acordados por pactos e protocolos neofeudais, estabelecidos com associações ditas representativas das chamadas forças vivas, como tal reconhecidas por um burocrata-mor.

O espectáculo deu uma péssima imagem tanto dos defensores do Estado de Direito como até de alguns liberais, só porque uma carunchosa legiferação até permite que possa florescer a indústria privada da parecerística, levada a cabo por servidores públicos, em regime de acumulação, coisa que apenas é escandalosa quando se trata de engenheiros autárquicos. Assim se confirmou como, apesar de sermos todos iguais, há alguns que são mais iguais do que outros.

Porque a justiça deixou de corresponder ao clássico tratar desigualmente o desigual, ao tal exigir de cada um conforme as suas possibilidades, para que a república possa dar a cada um conforme os seus méritos e, subsidiariamente, conforme as suas necessidades. Por outras palavras, estou a traduzir palavras de Aristóteles e São Tomás de Aquino, repetidas por Karl Marx e que um qualquer Adam Smith subscreveria.

Nenhum deles admitiria que uma lei urgente caísse na ratoeira de dar a imagem de estar ao serviço da justa reivindicação tecnocrática dos engenheiros do ar condicionado, isto é, aos únicos que podem refazer todos os sistemas de extracção do ar de todos os prédios existentes em Portugal.
Tal como um simples director-geral não pode cair na tentação de ter o privilégio da interpretação autêntica da letra e do espírito de uma lei da República, invocando leis de outros país ou directivas comunitárias, para mandar a ASAE proibir ou permitir o mais comum dos actos dos viciados em tabaco, que podem ser vinte por cento dos cidadãos. De boas intenções está o inferno da nossa história cheio, quando se diz que os meios justificam os fins, desde o enterramento em cemitérios, com Costa Cabral a promover a Maria da Fonte, a Ricardo Jorge a ser expulso do Porto, por causa da peste bubónica. Só ganhou a guerra à Cola Cola, porque estávamos em Ditadura...

Por outras palavras, refaçam a lei, senhores deputados! Não permitam que o nosso DGS continue a passar as presentes passas do Algarve, só porque quer cumprir o seu dever. Porque não tardará que muitos tratem de reler as memórias de Zita Seabra para compararem métodos celulares de militância com modelos de serviço público, assumidos pelo mesmo estilo e o mesmo actor...